Dicas

“Montanhismo de altitude é uma obra prima da psicologia. Estando em montanhas você consegue ver coisas em você mesmo que não enxergou antes.”

É, às vezes sou sincero demais e falo as coisas do jeito que elas são, sem mastigar muito a forma que digo tudo. Mas, não é hoje que vou mudar isso. Aqui vão algumas verdades e tudo o que deve fazer e não fazer antes de querer aventurar-se em grandes altitudes e sentir-se uma criança novamente pensando “Por que não fiz isso antes?”

Muitas vezes me perguntam como é que eu treino para fazer tanta coisa? Resposta: Escalo montanhas. E o que eu faço quando estou na cidade? Resposta: bebo cerveja, relaxo e escrevo artigos sobre como treinar (rsrsrs).

Montanhismo de altitude é uma obra prima da psicologia. Estando em montanhas você consegue ver coisas em você mesmo que não enxergou antes. Você pode se internar no seu próprio pensamento por horas ou dias e enxergar o seu “eu interior” se é que existe um. Longe de escrever uma guia de autoajuda, quero dizer que trata-se de um esporte que exige muito do seu psicológico e, se há algo que deve estar em ordem antes de você tentar uma montanha, é a sua própria cabeça!

Foto: Maximo Kausch
Foto: Gabriel Tarso

Sou guia de montanha há muitos anos e vejo muitos dos meus clientes reclamando que não têm tempo para treinar. O que acaba acontecendo 80% das vezes é o seguinte:

1 – “Não tenho tempo de treinar agora, vou trabalhar mais agora para espremer mais uns dias de férias pagas e usar elas na expedição do Maximo“.

2 – Você lê várias mensagens dos outros membros da expedição dizendo que estão treinando há x meses e bate aquele desespero.

3 – Você contrata um personal trainer e quer recuperar o tempo perdido. Você conta que vai escalar o Aconcágua (por exemplo) e ele recomenda uma série de exercícios de cardio, repetições com peso e após 2 semanas você acha que pode escalar o K2 de costas.

Lamento dizer, mas você foi enganado(a)! Apesar de achar interessante e querer ajudar, seu personal provavelmente não sabe nada sobre grandes altitudes. Já ouvi pelo menos uma dúzia de vezes “Olá Maximo, desculpe, não poderei ir na expedição pois tive uma lesão no meu pé”. É comum que no desespero de correr atrás do tempo perdido, as pessoas tenham algum tipo de lesão.

As lesões causadas por treinamento repentino e/ou excesso de treinamento são sempre as piores e farão não só com que você não consiga ir à expedição mas também com que tenha dificuldades para ir à praia. A recuperação dessas lesões demora meses ou mesmo anos e nunca volta a ser o que era. Você ficará mais gordo ainda, terá gasto um montão de dinheiro, vai ficar insuportável, porque não pode ir na expedição que tanto queria, e sua namorada(o) ou esposa(o) vai largar você…

Lesões em tendões, juntas ou ligamentos são as piores. O mais comum é alguém ter uma fascite plantar, uma lesão nos ligamentos do joelho ou mesmo tornozelo. Confie em mim, treine da forma certa e não exagere. Lembre-se que a parte física abrange somente o 30% do seu sucesso, sim isso mesmo 30%. Relaxe, tome cerveja (não muita) e tenha bom senso.

Foto: Maximo Kausch
Foto: Gabriel Tarso

Antes de se preocupar com a parte física tenha o seguinte em mente:

  1. Você não vai escalar um cume, você vai escalar uma montanha

Não, repito, não foque no cume. Você vai para a montanha para se divertir. O cume é uma pequena porção da montanha de apenas alguns metros é feia, tem neve, ventos, faz muito frio, não é nada confortável lá em cima, você vai passar só alguns minutos lá. A maior parte do tempo, 99% da expedição, você passa no resto da montanha.

Escalo há muitos anos, só faço isso. Posso me dar ao luxo de observar as pessoas nos momentos mais inoportunos, quando eles estão mais vulneráveis. Aprendi que os que vão para a montanha focando no cume e só no cume acabam se dando muito mal. É natural que se você se preocupa com o quão complexa uma expedição realmente é, sua cabeça estará cheia e você não vai poder curtir o momento. Suas chances na verdade serão MENORES do que alguém que está curtindo cada momento da expedição. Esqueça do cume, ele será um bônus se você fez todo o seu dever de casa.

  1. Não planeje demais, nem tudo estará ao seu controle

Costumo ver pessoas planejando as viagens e agendando um hotel para daqui 3 meses e querendo ver fotos do quarto e perguntando se tem WiFi. Quando a viagem acontece e a pessoa descobre que a estrada está fechada porque teve uma enchente, ela fica tão nervosa que volta para casa…

Montanhas têm centenas de variáveis que fazem com que tudo mude. Informe-se, mas não tente planejar muito. Tenha em mente que nesses ambiente tudo pode mudar em questão de minutos! Estando aberto a mudanças você não ficará tão preocupado e poderá se dar ao luxo de relaxar mesmo em momentos ruins. Suas chances serão maiores ainda! Essa, exatamente essa, é a essência do nosso esporte e o que nos faz crescer muito como pessoas.

  1. Você é maratonista ou corredor de montanha? Cuidado!

Se você já pratica algum desses esportes de alta performance você terá mais dificuldades de se adaptar nas montanhas. Não acredita em mim? Explico fisiologicamente o porquê!

Durante minhas expedições, quando acabamos de chegar na altitude, costumo checar os sinais vitais e ver o estado geral de saúde dos meus clientes. De vez em quando aparece aquele cliente que tem o pulso de descanso ao redor dos 40 batimentos por minuto (o normal é ao redor dos 70). Penso comigo mesmo “F**deu”

Na verdade é ótimo que alguém tenha um pulso tão baixo, isso quer dizer que caloricamente falando não vai custar nada para essa pessoa se adaptar à grande exigência cardíaca que está por vir. Sim, seria ótimo se eles me escutassem e não saíssem correndo na frente! Só que devido ao fato de se tratar de atletas de tão alta performance a paciência não é uma virtude que eles estão acostumados. Tendo um estado de saúde tão bom, os sintomas nos primeiros dias são inexistentes ou demoram para aparecer. O corpo de um atleta desses compensa a hipóxia (baixo O2) por outros mecanismos e só dá sinais quando a coisa já está feia.

Fora isso, o coração de um atleta é fisicamente maior e mais forte do que um coração normal, o que causa uma pressão alveolar maior. Estas pequenas estruturas no pulmão (alvéolos) que são responsáveis por entregar oxigênio ao sangue, são revestidas por pequenos capilares. Quando a adaptação à altitude está sendo mal feita, esses capilares vazam plasma sanguíneo no tecido e isso gera um processo chamado edema pulmonar que pode aparecer no segundo ou terceiro dia na altitude e é MORTAL. Portanto, pessoas com corações mais fortes são mais suscetíveis à desenvolver um edema pulmonar.

Atletas de alta performance devem se adaptar nas grandes altitudes como qualquer outra pessoa e, se isso for feito, aí sim a resposta do corpo de um atleta NO FINAL da expedição é superior à de uma pessoa normal. Essa aclimatação em altitudes é bem chata e demorada, mas deve ser feita. Resume-se a 2 palavras: paciência e água.

Portanto, se você for atleta de alta performance, tenha muita disciplina e aprenda a relaxar e tomar cerveja. Escute seu guia e não saia correndo na frente como está acostumado(a). Saiba que o seu treinamento só vai ajudar no final da expedição.

Foto: Maximo Kausch
Foto: Gabriel Tarso

Sabendo de tudo isso, vamos ao treinamento físico:

  1. O melhor treinamento para fazer montanhas é fazer montanhas

Você deve estar pensando: “Claro, para você é muito fácil falar isso, pois passa 8 meses por ano na montanha”. Sim, concordo que para os que vivem na complexidade de uma cidade e nos empregos cada vez mais exigentes com cada vez menos férias, não há quase nada de tempo para você treinar, muito menos em montanhas que são longe das cidades.

Porém quero deixar claro que o melhor treinamento físico que você pode fazer é subir montanhas menores aqui mesmo no Brasil, de 3 a 4 vezes por semana. O ideal é fazer isso com peso mas sem exagerar. Leve no máximo 5 a 8 kg dependendo do seu peso. O que recomendo é levar algumas garrafas pet cheias de água e ir tomando elas no caminho.

E por quê não posso fazer isso numa academia? Resposta: quando você vai numa academia e corre 10 km na numa esteira por 1 hora e pouco e faz bike por outra hora, você treinou apenas 2 horas. Expedições à alta montanha exigem que você passe de 4 a 10 horas fazendo exercícios com uma exigência cardíaca e pulmonar que pode ser o dobro ou o triplo do que se você estivesse fazendo a mesma atividade em altitudes normais. Numa trilha de montanha você estará fazendo um exercício de várias horas e acostumando a levar uma mochila. Além disso a movimentação e exercícios que você estará fazendo serão similares àqueles que você precisará na montanha.

  1. Tudo o que não seja novo para você na montanha só irá ajudar

Quero dizer que: se você nunca carregou uma mochila, nunca passou frio, nunca dormiu numa barraca ou foi “ao banheiro” no mato, você vai ter que aprender tudo isso. Quanto menos coisas novas você tiver que aprender, menos preocupações você terá e mais fácil será. Em resumo, vá para a montanha!

Há literalmente centenas de roteiros ótimos mesmo no sudeste do Brasil que ajudarão muito no seu treinamento: Parque Nacional do Itatiaia, Serra Fina e Serra dos Órgãos são apenas alguns exemplos que você pode conhecer e treinar. O Brasil é maravilhoso e cheio de montanhas!

Serra Fina - Foto: Wilson Neves de Miranda/Flickr - Creative Commons
Serra Fina – Foto: Wilson Neves de Miranda/Flickr – Creative Commons
  1. Não tenho tempo de treinar em montanhas, só posso fazer academia

Ok, tudo bem, vamos por partes. Primeiramente saiba que não será fácil e você vai precisar de mais tempo para se aclimatar numa montanha. Segundo: como já falei antes, cuidado com as lesões. Terceiro: cuidado com as lesões!

Sobre a musculatura: Para treinar numa academia você não deve ficar bombado(a). Músculos consomem mais oxigênio e isso é algo que você não tem sobrando na montanha. Montanhismo de altitude é um esporte muito ingrato. Imagine que na altitude a moeda local sejam as calorias: para o corpo é muito caro fazer processos complexos como quebrar gordura. É muito mais barato para o corpo consumir a sua musculatura. Portanto se você está fazendo academia e ainda tem uma barriguinha e quer perder ela na montanha, saiba que você só vai perder seus músculos e sua barriguinha ainda estará lá na volta. Caso trate-se de uma expedição longa, recomendo ganhar musculatura em lugares do corpo que não serão exigidos como a parte superior das costas.

Cardiovascular: Este será seu foco. Você precisa basicamente estar acostumado à grande exigência cardíaca que terá na montanha. O ideal é começar com um treinamento básico nos primeiros meses para fortalecer ligamentos e, aos poucos, ir aumentando as horas de treino. O treinamento deve ser longo e sem muita exigência. Esteiras que podem ser inclinadas são as preferidas.

Descanso: Descansar é uma parte essencial do treinamento. Tanto para os que treinam na montanha como para os que treinam na academia, os que treinam nos dois lugares ou para os que não treinam, como eu, o descanso é a parte essencial do treinamento. Você PRECISA descansar, não é uma escolha!


Escrito por

Maximo Kausch

Maximo Kausch é alpinista, especialista em montanhas de altitude, guia, professor e recordista mundial por ter escalado 83 montanhas com mais de seis mil metros de altitude na região dos Andes. Além de dar cursos de montanhismo e alpinismo, uma de suas grandes missões é desbravar locais ainda inexplorados.