Se você já fez o Caminho de Santiago ou conhece alguém que já se jogou nessa aventura, sabe que é impossível terminar essa jornada do mesmo jeito que começou. Os vários quilômetros feitos à pé ou de bicicleta, as belas paisagens, pessoas de diferentes lugares do mundo e uma enorme paz exterior provocam reflexões e instigam uma série de pensamentos sobre o mundo e sobre nós mesmos.
Com o Joy Oda (@Joy.Oda) não poderia ser diferente. Ele é bancário e quando estava prestes a completar 40 anos tirou um tempo da loucura do trabalho e de São Paulo para viver o Caminho. Joy começou o caminho no norte da França e foi até Santiago de Compostela. Durante os 800 km de caminhada, ele relembrou fases da vida, chorou, aprendeu, sorriu, passou por alguns perrengues, conheceu muitas pessoas especiais, ouviu histórias e finalizou o caminho com muita saudade, mais perguntas e uma certeza: a vida nunca mais será a mesma.
Leia o depoimento dele na íntegra e inspire-se nessa história:
“Eu poderia contar sobre como caminhar 800 quilômetros atravessando todo o Norte da Espanha desde a França sem nenhuma dor ou bolha nos pés. Eu poderia falar sobre o que eu levei em pouco mais de 5kg na minha mochila ou sobre a minha incrível e confortável bota Ultra FastPack II Mid GTX da The North Face, mas eu ignoraria a parte mais importante de toda a caminhada, eu ignoraria a grande viagem que fiz para dentro de mim mesmo.
Pode parecer tolice eu falar sobre esta incrível viagem de autoconhecimento e confesso que em alguns momentos eu realmente achei que era um exagero este papo de conhecer a si mesmo. Mas, tantas e tantas vezes eu me fiz perguntas caminhando que eu simplesmente não sabia responder de maneira direta, de maneira definitiva e sem deixar dúvidas. Isso prova algo que eu achava que compreendia muito bem, mas que eu estava completamente enganado:
Eu não me conheço tão bem quanto eu pensava que me conhecia antes de realmente me conhecer um pouco melhor.
Não saber como responder o que mais me irrita e por quê? Ou o que não gosto e por quê? Ou então: o que me deixa completamente satisfeito e por quê?
Parece fácil, não é mesmo? Tente.
Se a sua resposta for: ‘várias coisas me irritam’, bem, você já não conseguiu a primeira pergunta.
Existem coisas mal resolvidas na sua vida? Você já confrontou isso de maneira livre e integral? Já chorou por carregar esta mágoa, já se livrou das culpas, dos julgamentos e do sentimento de injustiça do mundo?
Eu tenho vários assuntos pendentes. Todo mundo tem suas pendências, assunto não terminados, assuntos não iniciados e posso falar sobre um deles com vocês.
Meu pai se separou da minha mãe muito cedo, quando eu ainda tinha 5 anos. Ele morreu de um câncer muito agressivo quando eu tinha 8 anos. Pouco antes de morrer, viajou para o Japão numa última tentativa para se tratar, mas não havia mais tempo. Morreu longe dos filhos, não me deixou quase nada de memórias ou exemplo de como ser um bom pai ou de pelo menos como ser pai, certo ou errado, simplesmente ser pai.
Hoje, sou pai de 4 filhos e tenho certeza absoluta que não sou o melhor pai do mundo, mas tento ser pai. Simplesmente tento ser pai, do meu modo, do meu jeito sem jeito, errando mais do que acertando, pedindo mais desculpas a mim mesmo do que me orgulhando de ser pai de 4 filhos maravilhosos e que só me trazem alegria.
Pude xingar meu pai por ele não estar aqui, por não estar nem aí. Pude resolver algumas pendências dos meus sentimentos, pude compreender que eu não aprendi como deveria fazer e também pude enxergar um pouco do que eu não devo fazer. Se vou colocar em prática, eu não sei, mas hoje reconheço coisas que até então eu não enxergaria.
Caminhar por 27 dias, conhecer gente dos mais diversos lugares do mundo, das mais diversas criações, culturas e conhecimentos. Simplesmente acordar, caminhar, comer, tomar banho, lavar roupa e descansar. Rotina que se repetia diariamente, mas que se bem organizado, sobrava tempo para passear, conhecer os locais, não fazer nada ou simplesmente interagir com outras pessoas.Planejamentos de anos e anos não se realizam constantemente e sim sonhos ou melhor, realizações.
Planejei caminhar 32 dias, chegar em Santiago no dia do meu aniversário, mas quis o Caminho que eu fosse um pouco mais rápido, ou que eu caminhasse mais um pouco em alguns dias para resolver assuntos sobre mim mesmo que estavam em pauta.
Sonhei ver campos de girassóis floridos, enormes e infinitos campos de trigo, aquelas paisagens das fotos dos livros, ver aquele tanto de gente com mochilas nas costas, jantar e almoçar com gente desconhecida, ver estrelas cadentes, ver o Sol Nascer lindo no Alto do Cebreiro, vencer o calor, a dor, as bolhas. Sonhos. Sonhos de quem planejou muito o Caminho.
Só quem caminha o Caminho, sabe das dores, das delícias e das emoções que se vive a cada fase dele. O hospitaleiro do Albergue Municipal de Reliegos me disse algo que vou guardar para sempre:
‘O Caminho é dividido em 3 partes :
1 – de Saint Jean Pied de Port a Burgos: o Caminho Físico
2 – de Burgos a León: o Caminho Mental
3 – de León a Santiago de Compostela: o Caminho Espiritual
No meu caso, diria que o Caminho foi completamente espiritual, um pouco mental e quase nada físico.
Eu não estava nada preparado para chorar quase todos os dias. A coisa virou tão costumeira que nas últimas 10 etapas eu já caminhava chorando e já nem me importava mais com quem me via chorar. Não estava preparado para ter altos papos cabeças comigo mesmo ou com outras pessoas desconhecidas e em Espanhol (que se tornou fluente ao longo do Caminho). Também não imaginava assistir tantas e tantas missas e me emocionar tanto em algumas delas, já que não sou dos mais religiosos.
Me rever, me reaprender, me reconhecer, me reinventar e me refazer faziam parte do que eu imaginava para mim desde o início, o que tive foi muito além disso. Descobri que preciso antes de tudo isso, ter o básico que é ao menos saber um pouco mais de mim mesmo, porque no final das contas, descobri que sei muito pouco, quando eu imaginava que já sabia de tudo.
Pela parte mental, eu estava muito bem preparado. Desde as escolhas para ter uma mochila leve com somente aquilo que era necessário (ou que eu imaginava ser necessário, porque ainda daria para esvaziar ainda mais) até a aceitar as mudanças dos planos diariamente, ou acordar mais cedo que o previsto e dormir menos para fugir do Sol. Ou de ter preguiça somente em um dos dias que não queria ter levantado da cama para caminhar, mas tive que ir. Mentalmente eu estava bem forte, de cabeça aberta, peito aberto e muito disposto a ouvir as pessoas e avaliar se não haviam outras opiniões e ideias melhores que a minha.
E fisicamente, bem, estou surpreso até agora. Nenhuma dor, nenhuma bolha, nenhum sofrimento. Diria que o Caminho para mim, fisicamente, foi um delicioso passeio que desfrutei do início ao fim. Tomei diversos cuidados, como tirar botas e meias por 30 minutos a cada 3 horas de caminhada para manter os pés secos e também secar as meias no sol. A partir do sétimo dia, comecei a utilizar vaselina nos pés, presente de um peregrino que acabou sua jornada em Puente la Reina, já que pulou as etapas entre Pamplona e Puente por conta de bolhas no pé e para chegar dentro do tempo previsto teve que pegar um ônibus e pular estas etapas. Voltou apenas para caminhar 40k e me deu a vaselina que foi importante demais para mim e para os meus pés.
Não fiquei doente, não me senti mal, não tive dores de cabeça. Estava me sentindo um Touro de tão forte e tão incrível que eu estava fisicamente.
E ao final desta jornada, fica aquela confusão de sentimentos:
Por um lado, a ansiedade aumenta com a proximidade de Santiago de Compostela, a saudade da família, dos amigos, de casa, tudo toma proporções gigantescas, há uma euforia por estar próximo de conquistar uma verdadeira façanha. Claro! Façanha mesmo. Quantas pessoas você conhece pessoalmente que caminharam 800k em uma determinada quantidade de dias? Quantas? E, verdadeiramente, me orgulho muito disso, por chegar ao final e perceber que ainda poderia caminhar muitos e muitos quilômetros a mais.
Por outro lado, existe a tristeza do fim da jornada, de não levantar e ter que colocar a mochila nas costas e simplesmente caminhar sem maiores preocupações na vida. De não cruzar com outros peregrinos e desejar/ouvir: Buen Camino! De não ficar mais à toa olhando o horizonte sem se preocupar com o tempo, porque no caminho fazemos o nosso próprio tempo (pagamos e aceitamos a consequência disso – na minha penúltima etapa, eu quis ser um peregrino paz e amor e caminhar com outras pessoas, papear, parar 60 vezes e quando cheguei ao meu destino – já tarde – fiquei sem albergue para dormir e dormi na rua. Tristeza de não estar mais no Caminho.
Para mim, não estar mais no Caminho me trouxe um grande ‘bode’. Nos últimos dias, eu realmente fiquei triste. E demorou um pouco para eu entender que o fim é necessário.
Compreendi que eu não estou mais no Caminho, mas que agora eu também sou o Caminho, porque agora ele faz parte de mim e eu faço parte dele.”
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