A escalada vai estrear como esporte olímpico em 2020 e o formato de disputa definido pelo Comitê Internacional acabou gerando mudanças no esporte e nos treinamentos de muitos atletas, principalmente para os brasileiros. Isso porque na Olimpíada, a escalada será disputada de forma combinada, ou seja, os atletas vão precisar escalar nas três modalidades: Boulder, Dificuldade e Velocidade e apenas o mais completo de todos vai ganhar.
No Brasil, Boulder e Dificuldade já são modalidades bastante difundidas, no entanto, Velocidade é algo totalmente novo, tanto que nenhum ginásio do país conta com uma parede oficial de escalada em velocidade. No último final de semana a Associação Brasileira de Escalada Esportiva (ABEE) realizou, pela segunda vez, o Campeonato Nacional de Escalada em Velocidade. A competição contou com os principais atletas do país e foi realizada em uma parede semi-oficial instalada na Casa de Pedra, em SP. O evento mostrou que o Brasil ainda tem um longo caminho a percorrer para disputar entre os grandes na modalidade.
Felipe Ho é um dos destaques nacionais na escalada de velocidade. No campeonato recente ele cravou o tempo de 7.93 segundos e foi, de longe, o mais rápido na via. Nós conversamos com ele para entender os desafios do esporte e como ele tem driblado a falta de estrutura do Brasil para evoluir na modalidade e lutar por uma vaga nos Jogos Olímpicos de Tóquio. Confira a entrevista na íntegra:
The North Face Brasil: Como foi o seu início e a sua adaptação à escalada de velocidade?
Felipe Ho: O meu começo na modalidade de velocidade teve um super incentivo. Eu estava em Arco, com o Cesinha e com a Tati e eu ia competir em três meses no campeonato mundial juvenil de 2017. Aí a Tati, esposa do Cesar, falou assim pra mim: “se você fizer sub-15, você ganha um gelatto de graça!”. Aí na minha primeira tentativa na via de speed eu fiz em 24 segundos e depois de 2 ou 3 meses, trabalhando a via e tals, nos treinos na Europa, eu fui de 24 segundos para 9,5 no Campeonato Mundial Juvenil. Foi bem legal a evolução nesses três meses, até porque foi a primeira vez que eu comecei a trabalhar com seriedade a via. Até então, eu nem conhecia. Nunca tinha tocado na via, só conhecia por vídeo. Depois, a cada ano era uma surpresa, porque eu competia fora em speed, voltava para o Brasil, ficava seis meses sem treinar, sem encostar na agarra, só vendo vídeo e estudando, e voltava pra lá. Meu tempo na primeira ou segunda entrada ia pra casa dos 12 e às vezes já abaixava para 9 baixo. Então, a minha adaptação foi até que rápida.
Eu gostei muito da modalidade. Eu tinha muito preconceito, porque não tem nada a ver com escalada tradicional. Você não pensa muito para escalar, você só reproduz a mesma sequência. Então, eu tinha esse certo preconceito e descobri que é uma coisa que eu me divirto muito quanto treino. Porque é divertido. O treino flui muito, porque você está constantemente caçando ali “milissegundos” e, quando você consegue, é só alegria. Eu me descobri na modalidade e estou satisfeito.
The North Face Brasil: Qual é a principal diferença técnica (além é óbvio da velocidade) entre essa e as outras modalidades de escalada?
Felipe Ho: A principal diferença técnica do speed é que você não pensa para fazer a escalada. Eu costumo explicar da seguinte maneira: quando você aprende a amarrar o tênis, você sempre amarra o tênis da mesma maneira para o resto da sua vida. A primeira vez que você amarra o tênis demora 5 segundos. A milésima vez que você amarra o tênis da mesma maneira vai ser em menos de 1 segundo, sei lá. Porque quanto mais vezes você amarra o tênis, mais rápido você amarrará o tênis. Então, é a mesma coisa com Speed. Quanto mais vezes você escalar a via, mais rápido você escalará. É uma coisa neuromotora, você não pensa para fazer, o seu cérebro só executa ali. É muito bizarro o quão rápido esse estímulo acontece. Porque quando você está fazendo a via e, por exemplo, você acidentalmente erra uma mão, você nem se lembra o porquê você caiu, o que você fez de errado. Porque é tão rápido, que você não tem essa noção. Nas outras modalidades você tem absoluta consciência do que está errado e o que fez você cair. Você tem esse tempo para pensar e analisar tudo. Speed não tem margem para pensamento.
The North Face Brasil: Aqui no Brasil essa modalidade é totalmente nova. Em SP, por exemplo, nós ainda não temos uma parede oficial. Existe alguma no Brasil?
Felipe Ho: A parede de velocidade é oficial desde que ela siga as normas e padrões impostos pela federação internacional do esporte. Na América do Sul inteira não existe nenhuma parede oficial. Então, no Brasil, no Chile, no Equador, em qualquer um desses países que são potências da América Latina existem paredes semi-oficiais, que as agarras são copiadas a partir de moldes. Então, a gente, ao invés de importar todo o set de agarrar homologados pelo IFSC, que custa uma fortuna, a gente consegue copiar essas agarras com o molde, fabricar em uma linha de produção e fazer com que isso barateie os custos e viabilize, por exemplo, um campeonato de speed. Além do fato de ser uma modalidade desconhecida e não praticada no Brasil, ela é uma modalidade muito cara de se colocar em um ginásio comercial.
The North Face Brasil: Como é uma parede oficial de escalada e por que é tão diferente treinar em uma “improvisada”?
Felipe Ho: A parede oficial segue essas regras que eu comentei. Então, ela tem 14 metros, 5 graus de inclinação, tem uma rotação específica nas agarras, tem textura na parede. Por exemplo, sendo um pouco mais específico, tem muitas vezes na parede de speed que você desloca o seu centro de gravidade para a esquerda, depois volta para a direita, depois vai para o centro e essa mudança do centro de gravidade muitas vezes te custa milésimos de segundo e quando você soma isso dá quase um segundo. Existem alguns métodos de sequência padronizadas em que você tenta priorizar o seu centro de gravidade para o centro da via, aí você não desloca ele tanto e não perde esses milissegundos, porém, você tem que confiar muito na textura da parede para usar esses métodos mais ousados. O problema é que em paredes semi-oficiais normalmente você não tem textura, então, não tem como treinar isso. E se, vamos supor, você está lá fora e quer treinar esse método para que você abaixe o seu tempo, é muito arriscado. Porque se você vai para uma competição nacional em que não tem textura na parede, você pode perder a competição por um detalhe besta. Então, a gente se encontra em um impasse. A gente quer melhorar o tempo, mas, ao mesmo tempo, a gente tem que ter o pé no chão. Se eu melhorar o meu tempo lá fora, numa parede oficial, que é o que realmente interessa para todo mundo, eu posso comprometer um campeonato nacional, que não tem textura na parede. Porque eu vou usar um método que não funciona.
The North Face Brasil: O que você tem feito para compensar essa falta de estrutura no Brasil, considerando que nos jogos olímpicos o que vai contar é o resultado do combinado entre as 3 modalidades e os atletas precisam ser extremamente completos?
Felipe Ho: O que eu tenho feito é ir para fora do país, competir e treinar em ginásios internacionais em que eu encontro as paredes oficiais. Tudo isso me aproxima mais do que eu vou encontrar numa seletiva olímpica. Por exemplo, o ginásio em Innsbruck, onde eu estou treinando, é o melhor ginásio para treinar as três modalidades, é o mais completo. Ter as três modalidades durante o seu cotidiano de treino faz com que a gente se acostume com os três tipos de estímulo. Nos primeiros dois meses em que você incrementa isso na sua rotina de treino, é um espanto para o seu corpo. É uma fase de adaptação brutal até que você consiga mostrar algum resultado de evolução nas três modalidades. Porque o seu corpo está constantemente sendo “mutilado” durante os meses de adaptação. Passados esses dois meses você começa a ter um pouco mais de autoridade em relação a esses três estímulos. Na seletiva olímpica a gente vai competir nas três e o nosso corpo tem que estar blindado. Não pode ser nada novo.
The North Face Brasil: No último final de semana rolou o Campeonato Brasileiro de Escalada e a modalidade Velocidade entrou na competição pela segunda vez. Como você sentiu essa disputa?
Felipe Ho: Eu me senti muito confiante, até porque eu estou muito distante de todo mundo que compete no Brasil nessa disciplina porque eu tenho a vantagem de que eu treino essa modalidade fora. Então, é natural que os meus resultados, meu tempo e tudo o mais sejam muito superiores ao de quem treina aqui. A gente está falando aí de uma diferença de quase dois segundos e meio de diferença. Mas, eu não tive muita sensação em relação ao speed. Eu não gosto de competir muito nisso ainda, eu estou aprendendo e espero que nas próximas seja cada vez melhor.