Inspiração

Você já deve ter ouvido dizer que, na verdade, não é o homem que decide escalar uma montanha e, sim, a montanha que permite que o homem a escale. Por mais que os planos sejam feitos e todas as etapas de planejamento estejam dentro dos conformes, nem sempre é possível realizar um projeto, principalmente quando estamos falando de conquistar uma das montanhas mais altas do mundo.

O guia de montanha Carlos Santalena já esteve nos maiores picos do mundo e viveu diversas experiências. Se tem alguém que sabe que é preciso respeitar a natureza e também o ensino dos mais sábios e da comunidade local, é ele. Em 2015, uma temporada depois de o Everest sofrer com uma enorme avalanche, ele e o parceiro de escalada Eduardo Sartor, ambos guias da Grade 6 Expedições, planejavam fazer cume no Lhotse. No entanto, por uma força maior, eles acabaram tendo que adiar os planos, mas saíram salvos e imunes de um dos maiores terremotos que já atingiram o Nepal. Tudo isso por conta de um conselho de um Lama que eles encontraram no caminho.

O Carlos nos contou todos os detalhes dessa história. Confira:

“Em 2015 a gente tava no Nepal com alguns grupos de trekking e, como não tínhamos expedições ao cume do Everest, eu e o Eduardo Sartor íamos aproveitar para realizar um sonho pessoal, que era escalar o Lhotse. Íamos só nós dois, então, nós contratamos o serviço de acampamento base e teríamos uma expedição mais autônoma, aproveitando a viagem de trekking que nós estaríamos guiando. Estava tudo organizado no acampamento base. Nós despachamos o nosso equipamento técnico pra lá, que é o mesmo campo base do Everest, guiamos os dois grupos, nos encontramos em um ponto de intersecção das rotas de trekking e seguiríamos, eu e o Du, novamente até o campo base, aproveitando os 45/50 dias restantes para fazermos a escalada ao Lhotse.

Carlos Santale no trekking que leva ao acampamento base do Everest. Foto: Arquivo Pessoal

Tanto com os grupos de trekking, como de expedição, a gente sempre passa pelo Lama Gueshe, que era o Lama mais antigo da região do Khumbu. Ele morava em Pangboshe, a 3.850 metros de altitude. Ele recebia os trekkers e alpinistas, sempre com muito carisma. Todos na região reverenciavam muito ele. O Lama sempre fazia todos entrarem na salinha dele, recitava alguns mantras e depois entregava um pequeno folheto escrito o mantra que ele ensinava. Essa era uma experiência super profunda no meio do Himalaia. A gente fazia questão de sempre passar por lá.

Em 2015, assim como nas expedições anteriores, nós passamos pelo Lama com os grupos de trekking. Depois, quando fomos fazer a subida definitiva, em direção ao Lhotse, nós passamos por lá novamente no Lama Gueshe. A gente comprava as bandeirinhas de oração e levava lá para ele abençoar. Durante a benção, ele canta uns mantras e abençoa as bandeirinhas, para que nós possamos levar para amarrá-las durante o puja, que é a cerimônia feita antes de qualquer escalada na região. Depois desse ritual, o Lama tinha o hábito de entregar um cartão aos expedicionários, em que ele escrevia o nome do alpinista atrás e pedia para que, quando retornasse do Everest, a pessoa deixasse na casa dele uma foto no cume. Então, reza a lenda local que todos os expedicionários que passaram pelo Lama e ganharam esse cartão voltaram vivos.

Recebendo abenção do Lama. Foto: Carlos Santalena/Arquivo Pessoal

Nós passamos por lá e no dia seguinte seguiríamos para o Memorial dos Mortos, a caminho de Lobuche, que está a mais de 4 mil metros, indo para o campo base. O Lama começou a coçar cabeça, abençoou as bandeirinhas e falou: ‘passem amanhã no memorial dos mortos e deixem lá todas as bandeirinhas’. Nós achamos estranho e  perguntamos se não teríamos que guardar nenhuma para ser usada no Puja. Ele disse que não, que deveríamos deixar todas as bandeiras no Memorial dos Mortos e que fizéssemos esse ritual lá. Nós achamos interessante e seguimos essa orientação maior, afinal, era vinda de um Lama. Se ele estava dizendo, nós deveríamos seguir.

Dali nós saímos, no dia seguinte passamos no Memorial, já a caminho do campo base. Eu e o Eduardo paramos lá e levamos um tempo. Eram muitas bandeirinhas para amarrar, fizemos as orações e isso acabou atrasando a nossa chegada a Lobuche. Quando chegamos lá, nós tomamos a decisão de ficar ali, ao invés de ir direto para o campo base. Já estava tarde e ali dava pra descansar no lodge, comer alguma coisa e no dia seguinte pela manhã iríamos para o campo base. Assim que nós decidimos isso, nós sentamos para tomar um chá no lodge e aconteceu o terremoto. A gente sentiu no chão, as mesas começaram a se desequilibrar. O dono do lodge saiu correndo da cozinha dizendo que era um terremoto. Porque, até então, eu achava que podia ser uma avalanche de pedra ou um vento muito forte. A gente saiu super assustado e quando o tremor se acalmou a gente pôde ver algumas paredes caindo no próprio lodge. Esse foi um dos maiores terremotos da história. Matou mais de 9 mil pessoas e, no acampamento base, que era onde nós deveríamos estar, 21 pessoas faleceram por causa de uma avalanche, decorrente do terremoto. As nossas barracas e os nossos equipamentos que já estavam lá também foram pegos por essa avalanche de pedra, o que nos faz entender que, se nós estivéssemos lá no campo base, nós também não teríamos sobrevivido.

Destruição no acampamento base do Everest após terremoto. | Foto: Carlos Santalena/Arquivo Pessoal

Tudo isso para dizer que existem alguns sinais que a gente acaba percebendo posteriormente, e que, nesse caso, veio através do Lama Gueshe, que hoje inclusive já é falecido. Essa é uma memória interessante que nos fez escapar. Talvez sem a instrução dele, nós não estivéssemos mais aqui. No dia seguinte ao terremoto, nós passamos a noite tensos, e quando acordamos pela manhã, nós decidimos ver como estava a situação no acampamento base. Foi ali que a gente percebeu que as barracas haviam sido apedrejadas. Por sorte, nenhum dos integrantes da nosso equipe tinha sido atingido, mas, muitas outras pessoas foram atingidas.

Dali surgiu uma outra oportunidade. Vendo os amigos locais, que nós já convivemos há muito tempo, precisando de ajuda e pedindo ajuda, não tinha como nós, simplesmente voltarmos para o Brasil. Então, foi ali que nós (eu, o Eduardo e o time da Grade6 no Brasil) começamos uma série de projetos sociais. Nós reconstruímos duas casas no vilarejo e continuamos sustentando até hoje um orfanato em Kathmandu. Nós também conseguimos fazer algumas intervenções em relação a água e saneamento em outro vilarejo. Daquele terremoto, que foi uma tragédia, acabou surgindo essa resposta à população local, um retorno por tudo o que tínhamos vivenciado e obviamente foi muito atípico. Depois do terremoto, todos os turistas foram embora e sobrou na trilha eu e o Eduardo sozinhos. Nós ficamos mais uns 20 dias por lá e pudemos contribuir bastante com as doações que vieram do Brasil, fazendo isso lá pessoalmente. Foi um grande prazer e se tornou um dos grandes propósitos, não só meu, pessoal, mas da Grade6 como um todo.”

Carlos e Eduardo Sartor com a comunidade local. Foto: Carlos Santalena/Arquivo Pessoal

 


Escrito por

Thaís Teisen

Jornalista, formada pela FIAM-FAAM, com especialização em Mídias Digitais pela Universidade Metodista de São Paulo. É apaixonada por esportes, natureza, música e faz parte do time The North Face de Conteúdo Digital.