Artigo escrito por Pedro Hauck
Até pouco atrás, o nome Ojos del Salado era algo totalmente desconhecido no Brasil, porém isso começou a mudar de alguns anos pra cá. Para quem ainda não sabe, este é o nome do vulcão mais alto do mundo, localizado na fronteira entre Chile e Argentina, no norte dos dois países, em uma área nuclear daquilo que chamamos da “Puna do Atacama”.
“Puna”, em quéchua, a língua dos Incas, significa “lugar alto”, porém só as alturas não definem o que é esta belíssima região geográfica, a qual tenho grande afinidade e carinho, apesar de já ter quase morrido várias vezes por lá. A Puna é de fato a região mais remota e hostil de nosso continente e, mesmo aquela vasta paisagem já tendo sido palmilhada pelos incas e outros povos mais primitivos, ela nunca foi ocupada de fato.
O motivo para isso é simples. A Puna é o começo (ou fim) do grande altiplano andino que tem sua área principal na Bolívia, no chamado “altiplano boliviano”. Mas, diferente de lá, a Puna é mais árida, venta mais e é mais seca, sem falar que as montanhas também são mais altas. Além do Ojos de Salado, que é a segunda montanha mais alta dos Andes, com 6.893 metros, lá está o Pissis, terceiro mais alto, com seus 6.795m, Bonete Chico, o quarto com 6.759m, Três Cruces Sur, quinto com 6.748m, Llullaillaco sétimo com 6.735m, Walther Penck, nono com 6.658m e muitas montanhas altíssimas. De todos os 6 mil andinos, pelo menos metade está ali.
Todas estas montanhas, sem exceção, são vulcões. Eu poderia explicar a origem deles e do próprio planalto andino, mas isso fugiria de minha narrativa. No entanto, o que é preciso frisar é como essa região é selvagem, sem ter nenhuma cidade e as poucas que existem em volta serem pequenas e pouco estruturadas. Poucos são os caminhos asfaltados, geralmente servindo para atravessar de um país a outro, a maioria dos caminhos nem estrada é, sendo apenas trilhas 4×4 cheias de perigos, como a própria altitude, que não faz a perfeita combustão dos motores, seguido pelas noites frias, capazes de congelar o aditivo anticongelante do sistema de arrefecimento, passando pelos ventos fortíssimos, capazes que estilhaçar o vidro dos carros. Isso sem falar no terreno, ora arenoso, que afunda os carros em atoleiros mortais, ora pedregoso, capaz de rasgar os pneus ao meio, quebrar o cardam e perfurar o cárter. Não, não é nada fácil dirigir na Puna, embora seja convidativo após quilômetros de sofrimento conseguir chegar na base das montanhas de carro.
O Ojos del Salado fica no chamado Paso San Francisco, uma “sela” que permite a passagem dos Andes, mas que atinge 4.720 metros de altitude, quase a mesma altitude do Mont Blanc, montanha mais alta dos Alpes. Mais ou menos por ali passou no ano de 1535 o espanhol Diego de Almagro, que anos antes havia conquistado, junto com Francisco Pizarro, a capital dos Incas, Cuzco e que, a partir daquela cidade, lançou-se ao Sul, conquistando também a Argentina e o Chile. No total, Almagro dispunha de 12.500 homens, mas devido ao frio, exaustão e falta de alimentos, apenas 2.500 chegaram no outro lado. Bom, acho que já dá para entender o motivo pelo qual ninguém nunca habitou a Puna.
Por outro lado, mesmo perigosa e remota, a Puna é uma paisagem absurdamente bela que nos deixa de queixo caído. Seus vulcões brancos, contrastam com as rochas negras dos basaltos, os andesitos vermelhos, contrastam com o céu azul do deserto. Os lagos endógenos acumulam sal branco em suas orilhas e suas cores vão do turquesa ao verde. Não falta vida selvagem: Condores rasgam o céu, vicunhas em bandos caminham pelos vales, raposas, pumas são os principais predadores.
Apesar de tudo já citado, há opções de montanhas que são acessíveis a pessoas que já praticam trekking e montanhismo no Brasil, mas que desejam fazer um upgrade e escalar uma alta montanha. O San Francisco, com seus 6.018 metros, carrega o nome homônimo do passo onde ele está localizado, é um dos mais fáceis 6 mil dos Andes, embora fácil não signifique moleza.
Desde 2015 levo pessoas a escalar nesta região tão impressionante, e que me deu vários capítulos em meu livro de vida. O destino é o Sanfra e o Ojos, como carinhosamente chamo estas lindas montanhas. Já passamos muitos perrengues por lá, mas neste último ano, em 2020, realizei uma das expedições mais lindas já feitas na região. Nosso grupo era pequeno, mas com pessoas especiais. De Curitiba, tínhamos a Bernadete, de São Paulo, o Junior, do Rio o Marcelo, de Salvador, o Gustavo, de Macaé o Luiz, Além do alemão Joerg, do italiano Giuseppe e do nipo-paulistano Antônio, de 72 anos!
Nossa aventura começou em Copiapó, que fica a 300 quilômetros do Ojos e que, com cerca de 150 mil habitantes é uma importante cidade no norte do Chile, tendo até aeroporto. Após deixarmos essa cidade, famosa pela mineração, começamos a subir os Andes por um vale seco que disseca a Puna e nos permite através deles atingir o planalto, que logo de chegada nos proporciona uma vista estonteante do maciço dos Três Cruces. Todos param para ver, mas sou obrigado a alertar para não deixar a porta do carro aberta, pois elas costumam voar por ali.
O destino do primeiro dia, no entanto é bem mais abrigado. É a Laguna Santa Rosa, um lago salgado repleto de flamingos, a 3.700 metros, que há poucos anos passou a ter um refúgio pago e bem estruturado, onde passamos as duas primeiras noites. Por ali, realizamos um trekking até os 4.500 metros no Vulcão Siete Hermanas com o objetivo de melhorar nossa aclimatação. No retorno ao refúgio somos presenteados com um churrasco de nosso guia argentino Sebastián, um gaúcho de pedigree. Tá, eu sei que comer algo pesado na altitude não é o melhor, mas comer uma proteína é bom para evitar a perda de massa magra e no nosso churrasco fazemos abobrinha, pimentão e outros vegetais na brasa que são tão bons quanto a carne argentina.
Deixando a laguna para trás, percorremos uma estrada poeirenta até cair na CH31, a estrada internacional asfaltada recentemente em total contraste com a via anterior. Ali precisamos passar por Maricunga, onde fica a distante aduana chilena, para registrar nossa expedição. Felizmente sem demais burocracias finalmente estamos livres para, cerca de 100 quilômetros depois chegar na Laguna Verde, uma lagoa também salgada a 4.400 metros de altitude que é um paraíso no meio dos Andes.
A Laguna Verde é cercada de montanhas, temos ao Leste o Vulcão Falso Azufre, a nordeste o remoto Condor, no Norte o Vulcão Laguna Verde, a Noroeste os vulcões gêmeos Emitaño e Peña Blanca, Oeste o Barrancas Blancas e, enfim, ao Sul o Mulas Muertas, que apesar do nome pouco convidativo é nosso próximo objetivo no processo de aclimatação.
Montamos um confortável acampamento ao lado do lago com uma enorme barraca refeitório, mesas e cadeiras e outra barraca cozinha, enquanto que cada integrante do grupo dividia uma barraca de 3 pessoas em 2. O supra sumo do acampamento são as águas termais provenientes da atividade geológica dos vulcões vizinhos. Com cerca de 38 a 40 graus é super relaxante e revigorante encarar estas águas após uma escalada.
Com 5.900 metros de altitude, o discreto Mulas Muertas passa despercebido no meio de tantas montanhas belas, mas nele, nosso objetivo não é cume, mas sim atingir uma altitude de 5.400 metros e fazer o corpo produzir mais glóbulos vermelhos. No alto do mirante que atingimos nesta altitude podemos ver pela primeira vez com nitidez o cume do San Francisco, ali pertinho.
Porém, antes de encarar este desafio de 6.018 metros de altitude ainda fazemos mais uma rodada de aclimatação e um dia depois, com nossos 4×4, percorremos a desafiadora trilha que leva até o refúgio Tejos, a 5.940 metros de altitude que é o ponto de partida para o cume do Ojos del Salado. Lendo parece ser fácil, mas chegar ali é preciso muita perícia no volante. Fazer este caminho antes da investida final ao Ojos é também uma estratégia, pois percorrê-lo requer, muitas vezes, saber onde estão as piores pedras pelo meio do caminho.
Felizmente conseguimos atingir esta altitude, permanecer por lá por cerca de duas horas (o suficiente para induzir a produção de glóbulos vermelhos) e retornar para descansar, comer e hidratar em Laguna Verde.
No dia seguinte, como de tradição, aparecem no acampamento base nossos amigos gaúchos Tiago e Luciana, que neste ano apareceu com o Ediceu de São Paulo e dando uma folga ao Sebastián ficaram encarregados de fazer um churrasco para todos. Claro, tomando cuidado para se hidratar bem e tomar muito chimarrão. Neste dia precisamos apenas relaxar e dormir cedo.
O ataque ao cume do San Francisco começa às 2h da manhã. A 4.400 metros de altitude, no verão, temos a agradável temperatura de 5 graus celsius. É um grande conforto poder vestir as roupas de frio extremo num lugar tão aprazível e ainda vestir as botas duplas sentados numa cadeira. Localizado a 35 quilômetros de distância, nós dirigimos de madrugada rumo à fronteira e, exatamente na linha de divisa, tomamos a trilha 4×4 pedregosa que começa a subir a montanha até os 5.200 metros, onde deixamos os carros estacionados e começamos a ascensão.
Ainda de madrugada, o frio é forte e logo percebemos que a água dos mais descuidados congelou. Porém a dificuldade passa a ficar menor ao passo que o sol surge no horizonte, colorindo o céu de vermelho e tirando das sombras as montanhas infinitas que se revelam sobre o solo seco da Puna. Mario, nosso outro guia, vai em frente com os mais rápidos que tomam distância. Deixo Sebastian com o veterano Antônio e vou acompanhando o grupo do meio.
Com a temperatura mais agradável, atingimos a cratera do vulcão e de lá, em terreno nevado, alcançamos o grupo da frente, com Mario, Marcelo, Gustavo, Luiz e Joerg que já começam o descenso. Eles fizeram cume em menos de 5 horas! Caminhando mais lentamente, enfim, Bernadete, Giuseppe, Junior e eu chegamos ao cimo, de onde se abre o horizonte e é possível ter uma visão privilegiada do Incahuasi, de 6.621 metros, a 11° montanha mais alta da cordilheira. Porém não é só isso, de lá podemos ver mais de 20 montanhas acima de 6 mil metros.
Ficamos cerca de uma hora e logo Sebastián e Antônio despontam no cume. Com 72 anos, esta foi uma das maiores aventuras de Antônio que se emociona no cume. Ficamos enormemente agradecidos e felizes por proporcionar uma experiencia incrível ao veterano que voltou a sonhar como uma criança.
Apesar de ser alto, realizar o descanso e a ascensão ao refúgio Tejos é o segredo para permitir uma melhor aclimatação e garantir cume neste gigante andino, que não pode ser ignorado. Nenhum 6 mil é fácil, mas o Sanfra é certamente um dos melhores para se começar em alta montanha.
No dia seguinte, desço com Antônio até Copiapó. Como seu objetivo era apenas escalar o Sanfra, a expedição dele acabava por ali. Retorno no dia seguinte com notícias e a previsão de tempo atualizada, agora o desafio é bem mais difícil.
Um dia mais tarde estávamos repetindo o ritual de vestir as roupas de cume, porém uma hora mais cedo. Com a trilha 4×4 já reconhecida, adotamos a estratégia de partir para o cume desde Laguna Verde e percorremos o perigoso e desafiador caminho no escuro da noite. Com direito a perrengues, é claro!
Estacionamos o carro a mil metros abaixo do cume. O frio era congelante. Satisfeita com a experiência, Bernadete decide não ir ao cume ainda de noite. Mario desce com ela até as caminhonetes e a deixa com abrigo e comida, enquanto caminha de volta para nos encontrar mais adiante.
O começo do ataque ao cume é composto por um enorme zig zag, numa pendente inclinada. Ao ganhar altura, a neve, que até então era fofa, passa a ser dura, por estar congelada. Colocamos os crampons e conseguimos atravessar uma perigosa diagonal que, em alguns dias precisa de cordas fixas para evitar quedas. Esta travessia termina num escorial de rochas vulcânicas com pedras do tamanho de uma cadeira, onde literalmente fazemos um trepa pedra. Como as rochas são soltas, eventualmente uma destas pedras escorregam e dada a altitude o coração quase salta pela boca.
Passado este trecho, já com o azul do céu em nossas cabeças, realizamos uma segunda transversal, mais longa e penosa que leva até a cratera do Ojos. Ali, Junior começa a reclamar de dor de cabeça e exaustão, era a altitude fazendo efeito. Fico para trás com ele, enquanto Mario e Sebastian acompanham os demais. Faço com que Junior se hidrate e tome gel carboidrato. Melhor, vamos nos encontrar com os demais que aguardavam protegidos do vento na cratera.
Daquele ponto até o cume, começa um trecho que não é longo, mas dado a altitude acaba sendo um grande desafio. Subimos uma crista e nela penetramos um vale estreito que termina numa parede inclinada, mas cheia de degraus, que leva até o afinado cume do Ojos del Salado. Ali começo a preparar a segurança do grupo, usando técnicas de escalada em rocha. Um a um eles chegam ao topo para deslumbrar aquele incrível visual montanhoso ainda com friozinho na barriga. São tantas montanhas no horizonte que é preciso as mãos de três pessoas para contar.
Infelizmente, já cansado, Junior acabou preferindo descer e eu desdobro para alcança-lo e acompanha-lo até o carro, onde encontramos Bernadete nos esperando. Foi meu quarto cume no Ojos del Salado e nem por isso não deixo de guardar em minha memória aqueles momentos de dor e prazer com direito no final a um pôr do sol belíssimo de despedida dos Andes.
Longe dos holofotes, o Ojos e o San Francisco são montanhas que nos permitem uma experiencia recompensadora em alta montanha, uma para quem quer iniciar e outra para quem já possui mais experiência. A cada ano, nossas histórias ecoam pelo meio, e cada vez mais estas montanhas têm se confirmado como clássicos andinos, porém com aquele sentimento de solidão de um dos locais mais selvagens e belos de nosso continente.