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Uma ponte de treliça de mais de dois quilômetros de extensão, suspensa sobre o rio Danúbio, separa a Romênia da Bulgária. A treliça é um sistema de barras de aço entrelaçadas que, juntas, suportam uma grande quantidade de peso e se estendem por longas distâncias.

Sem acesso a pedestres e com movimento intenso de carros e caminhões, a bicicleta não era bem vinda e tampouco permitida por ali. Com pistas estreitas, não havia recuo para ultrapassagem, então  precisei ocupar a via inteira e conter o trânsito até chegar às cabines da imigração – o que me deixou tenso e frustrado por não poder aproveitar a vista daquela emblemática zona cinza entre fronteiras.

Na antiguidade, a atual Bulgária – que tem origem eslava – era conhecida como Trácia e, assim como a vizinha Romênia, também passou pelo domínio romano. O idioma búlgaro é escrito no alfabeto cirílico, que muitos chamam equivocadamente de russo. Batizado em homenagem ao filósofo Cirilo, o alfabeto foi criado e desenvolvido a partir de 864 D.C. durante o Primeiro Império Búlgaro e suas letras derivam do grego.

Após me embriagar com Auroras Boreais na Escandinávia, iniciei uma fuga do inverno, que começou na Finlândia – após atravessar o país de norte a  sul – e passou por Rússia, Estônia, Letônia, Lituânia, Bielorrússia, Ucrânia, Moldávia e Romênia. Chegar à Bulgária representou um significativo marco. Se até  então a minha bússola mirava predominantemente rumo ao sul, a partir dali eu avançaria pela primeira vez em direção ao leste. A Turquia estava literalmente no horizonte.

Apesar de estar distante apenas 290 km da fronteira, ainda havia um desafio que demandava extremo cuidado com o clima. Antes de sonhar com o oriente e com a Rota da Seda, havia uma cadeia de montanhas para atravessar.

Desde que entrei na Estônia, para ganhar tempo, a travessia do continente se deu por caminhos que evitavam ao máximo as regiões montanhosas, mas para chegar à Turquia, não havia como desviar da Cordilheira dos Balcãs. O momento pedia atenção e disciplina, pois uma nevasca poderia chegar a qualquer momento ou a pista poderia estar com uma traiçoeira camada de gelo, condição que tive a infelicidade de provar algumas semanas antes.

Com seis graus negativos, saí cedo de um vilarejo chamado Targovishte para atacar o Passo Kotel, uma serra de apenas 650 metros de altitude. Coincidentemente o inverno europeu começava oficialmente naquela terça-feira. Não subestimei a baixa altitude pois, mesmo em modestas montanhas, há surpresas que a previsão do tempo não pode antecipar.

A estrada era pouco movimentada, havia um bom acostamento e o impecável asfalto estava seco e agarrava bem o pneu. A paisagem se revelava espetacular: detrás dos campos brancos de neve, uma floresta se erguia sobre a serra num tom mais acinzentado, carregando bolas de gelo nos galhos como se fossem seus frutos. O rio pelejava para romper placas congeladas e navegar rumo a oeste. O silêncio dobrou o frio no cotovelo daquelas curvas; depois absorveu o som do giro dos pedais até diluir os meus próprios pensamentos, me transformando também  em parte daquele cenário.

Dos sonhos das Auroras Boreais, na Escandinávia, à fuga para a Rússia via Finlândia – atravessando a própria sombra – em menos de dois meses eu mal podia me reconhecer. Fantasmas ficaram para trás, assim como quase quatro mil quilômetros percorridos desde a Lapônia. 

Mas algo mais tangível que as emoções ocorreu quando cheguei ao passo Kotel e encostei a bicicleta no guardrail. Tirei o gorro e as luvas, depois o anorak e a calça impermeável. Conhecedor dos próprios sinais, era difícil de acreditar no que a pele tentava dizer. Tirei o termômetro da bolsa de guidão para ter certeza: ele marcava espantosos quatro graus positivos.

Era como se a espinha daquela cordilheira estivesse segurando os ventos gelados do norte, enquanto pela outra face das montanhas chegava a brisa do litoral. O encontro das massas de ar polar e oceânica fez daquele local uma atmosfera única e aconchegante.

Encontrei um lugar espetacular para acampar e celebrar aquele momento. Em cima de uma úmida estrutura de concreto abandonada, havia um platô onde começava um pequeno bosque. Decorado de neve, mas com aquela temperatura positiva e suficientemente distante da rodovia, encontrei uma superfície plana e seca para armar a barraca. Um tronco de árvore deitado no chão serviu de banco para sentar e cozinhar e, enquanto esperava a comida ficar pronta, fiz algumas fotos que ilustraram a minha breve e bem sucedida passagem pela Bulgária. 

Um dia de viagem me separava da Turquia, país número 23 daquela aventura sobre duas rodas.


Escrito por

Israel Coifman

Israel Coifman Israel já havia rodado o mundo como jornalista, mas se encontrou mesmo atravessando fronteiras com a sua bicicleta. Para ele, aventura é permitir que a natureza selvagem - inerente ao ser humano - pulse com liberdade em nossas veias. Aceitar a vocação natural de nômade e explorador é dar voz à nossa melhor versão.