Inspiração

Adriano Pina Pereira e Beatriz Warmling Pereira são pai e filha, mas também são parceiros inseparáveis de escalada. Ele começou a escalar na década de 90, como consequência natural de suas viagens e acampamentos, que já eram cheias de aventura. Quando a filha nasceu, não levou muito tempo para que o amor pelo esporte passasse para a nova geração da família. Os primeiros contatos da Beatriz com a escalada aconteceram em 2012, quando o pai comprou a primeira cadeirinha dela. Desde então, não parou mais. Os dois escalam todas as semanas e já desbravaram vias em Santa Catarina (estado em que vivem), Rio Grande do Sul, São Paulo, Minas Gerais, Argentina e Tailândia.

Eles ainda têm muitos planos pela frente, mas já colecionam uma série de histórias legais para contar. Uma das experiências que mais marcou essa dupla aconteceu quando Beatriz, aos 12 anos de idade, encadenou a via Cemitério de Gatos, na Pedreira do Abraão, em Florianópolis. Além de ser uma via clássica, a Cemitério de Gatos tem um grau de dificuldade maior por sua exposição. Mas, isso não foi empecilho que parasse a pequena Beatriz.

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Pai e filha escalando na Tailândia. Foto: Adriano Pina/Arquivo Pessoal

Todos os detalhes dessa aventura foram contados por Adriano em um depoimento muito legal, que nós trazemos na íntegra aqui:  

“A via Cemitério de Gatos (7b) foi conquistada pela primeira vez no final dos anos 80 pelo escalador Bito Meyer e é de longe a mais conhecida da Pedreira do Abraão e uma das clássicas de Florianópolis.

Depois de encadenar a Clarinha Quer Dançar Reggae (7a) a Beatriz me perguntou qual seria o próximo projeto dela na Pedreira. Eu falei que uma opção seria a Cemitério de Gatos, mas que era uma via bem mais exposta e difícil de guiar.

No início de 2018 ela começou a entrar na via em top, mas somente no final do ano entrou com mais determinação. Quando conseguiu passar o esticão sem queda, eu vi que era possível ela mandar, mas em top, eu mesmo não estava preparado para vê-la guiando (quem conhece a Cemitério entende perfeitamente).

Em 2019 íamos pelo menos duas vezes por mês até lá para ela malhar a via. Um dia eu prometi que daria uma sapatilha nova para ela, uma Miura (mesmo modelo da minha), se chegasse até o topo. Foi dito e feito, na mesma semana ela chegou no fim da via e ganhou a sapatilha.

Pedreira do Abraão. | Foto: Climbing Floripa

Somente em 15 de junho ela conseguiu “entopizar” (mandar a via de top sem queda), mas ainda como muita dificuldade em um ponto da via. A partir daí já começamos a conversar sobre ela entrar guiando. Principalmente no caminho de volta do colégio, a Cemitério era sempre o principal assunto.

Um dia eu falei: “já pensou fazer a cadena da Cemitério antes dos 13 anos?”. Ela me olhou e perguntou se eu achava possível, disse que sim, mas que teria pouco tempo para se preparar.

No final de julho combinamos que ela iria treinar mais umas vezes para poder entrar guiando. Mas, logo em seguida veio uma gripe medonha que derrubou a pequena por uns 15 dias. O aniversário estava se aproximando e o tempo estava acabando.

No último domingo antes do aniversário ela entrou em top e isolou o lance mais difícil da via várias vezes até ter certeza que conseguiria mandar guiando. Acertamos que ela iria tentar a cadena na quinta-feira.

Finalmente chegou o dia de entrar guiando na via. Combinei com um amigo que ele iria lá para documentar a escalada. Chegando na base da via, ele já estava com seu equipamento pronto (parecia que iria documentar para BBC). Eu entrei, equipei, coloquei uma fita longa no esticão (sem isso o conselho tutelar poderia me prender) e desci. A Beatriz colocou os equipamentos, a sapatilha e se encordou. Tudo pronto, câmeras ligadas, drone voando e ela começou a escalar.

O começo da Cemitério é bem tenso, tem um lance pela direita, passando pela dinamite, e uma montada em uma rampa que é bem assustadora. Depois de costurar a 3° chapa vem o famoso esticão, onde, mesmo com uma fita longa, o potencial de queda ainda é muito grande. Depois você monta em um bico e vai para o lance mais difícil da via, aquele que ela tinha tido mais dificuldade. A Beatriz entrou confiante, chegou bem, fez a troca de mão correta e subiu o pé esquerdo, mas, em um descuido, se desequilibrou e caiu. Eu quase chorei, lá em cima ela se debatia (parecia o Chaves) pendurada na corda, dava para ver que estava muito frustrada. Disse para voltar e tentar mais uma vez, mesmo que sem a cadena ela deveria mandar o lance. Na 2° entrada conseguiu mandar e chegar no fim da via.

Quando desceu estava muito desanimada e triste (não lembro de ter visto ela assim escalando), a frustração era enorme. Ela sabia que poderia ter mandado a via, foi por um detalhe. Ainda disse para tentar mais uma vez, mas não tinha como, além ser uma via longa e cansativa o desânimo era grande.

Frustração pós-queda. | Foto: Adriano Pina/Arquivo Pessoal

Voltamos para casa e a ideia de mandar a Cemitério antes dos 13 anos parecia improvável, na sexta ela tinha aula e sábado a previsão do tempo não era muito boa, além da festa de aniversário com os amigos. Eu ainda sugeri (como pai responsável que sou) que ela faltasse a aula na sexta. Como ela tinha uma prova que não precisava de nota, não teria problema faltar, mas não deu certo. Acabou indo à aula e combinamos de tentar na sexta a tarde. De manhã soube que a pedreira estava fechada para o treino de Bombeiros. Cada vez mais improvável…

Ainda tínhamos uma chance, seria no sábado, parecia que só ia chover durante a tarde. Chegamos na Pedreira às 9h15. Eu subi, equipei a via e deixei tudo pronto.

Ela entrou na via, vi que estava mais confiante do que na quinta. Passou todos os lances com certa facilidade. Eu não respirava direito, o coração batia descompensado. Finalmente chegou no lance que tinha caído na quinta, se posicionou, subiu o pé esquerdo e montou. Quando estava quase pegando no batente salvador, deu uma desequilibrada, ali pensei que iria cair novamente, grudou na pedra, deu mais um impulso e pegou. Embaixo, eu estava com a boca seca, respiração ofegante e coração disparado. Tinha uma galera incentivando ela a mandar o lance, foi bonito de ver. Esperou mais um pouco, parou para colocar o magnésio e finalmente subiu no platô. A via estava conquistada, ali ela não cai mais, faltava somente costurar na parada. Foi só costurar e pular de felicidade.

A Cemitério de Gatos estava encadenada, com apenas 12 anos. No dia seguinte, 1 de setembro, ela fez 13 anos e a vida segue.

Alegria após a conquista. | Foto: Adriano Pina/Arquivo Pessoas

Escrito por

Thaís Teisen

Jornalista, formada pela FIAM-FAAM, com especialização em Mídias Digitais pela Universidade Metodista de São Paulo. É apaixonada por esportes, natureza, música e faz parte do time The North Face de Conteúdo Digital.