Inspiração

O Aconcagua (Argentina) é a montanha mais alta da América do Sul. Apesar de seu cume estar a 6.962 metros de altitude, ela tem condições climáticas e atmosféricas que o tornam muito parecido com outras montanhas acima de 8 mil metros de altitude. Esse é o destino de muitos montanhistas que estão começando em alta montanha e também um lugar para viver experiências intensas e colecionar aprendizados.

A guia de montanha Aretha Duarte tem um carinho especial pelo Aconcagua. Lá ela viveu momentos de superação em que contou com o apoio de amigos e em outra oportunidade conseguiu repetir o mesmo favor para inspirar outras pessoas a se superarem e conquistarem o grande objetivo: o cume da América.

Confira abaixo os detalhes dessa história:

 “A primeira alta montanha que visitei foi o Aconcagua, numa oportunidade de trabalho, fui até o Campo Base mais tradicional deste monte, Plaza de Mulas (4.300 metros), no ano de 2011.  Um trekking recomendado para pessoas sem experiência. São 4 dias de caminhada dentro do Parque Provincial Aconcagua. Confesso que essa não foi a experiência mais fácil que já realizei em altitude, mas com certeza despertou-me uma grande paixão. Já visitei 7 países praticando outras expedições, mas, foi neste mesmo monte, que voltei outras quatro vezes para viver as minhas mais intensas experiências em alta montanha. Nestas novas oportunidades subi pela Rota 360 Graus, permitindo que eu passasse por dois lados do gigante Sentinela de Pedra como é conhecido, sempre subindo por Punta de Vacas e descendo por Horcones.

Quando recebi o primeiro convite para voltar ao Aconcagua a fim de tentar chegar ao topo, com seus 6.962 metros de altitude, me emocionei e recordei o quão difícil tinha sido minha primeira experiência nesta região, por isso me dediquei a treinar fisicamente com muito afinco. Assim, na primeira vez que cheguei ao topo do Aconcagua me sentia muito forte, muito à vontade e grata por uma experiência tão agradável. Mas, essa impressão não se repetiu nos anos seguintes. Mantive os treinamentos físicos e psicológicos em dia, sempre me sentindo mais confiante e segura a cada nova visita. Retornei 4 vezes ao Aconcagua, guiando grupos da Grade6 em expedição ao topo das Américas. Este é um roteiro de 20 dias, sendo que de 14 a 17 dias são passados direto na montanha, com múltiplas adversidades. O ambiente é extremamente hostil pela grande altitude, baixa pressão atmosférica, terreno muito acidentado, grandes desníveis, baixa umidade relativa do ar, infra-estrutura muito restrita, longo tempo na montanha etc., até por isso, esse, sem dúvida, pode ser um excelente passo na preparação de quem almeja escalar um 8 mil no Himalaia.

São exatamente as grandes dificuldades inerentes à Expedição Aconcagua que me deixam apaixonada pela montanha, sempre aprendo muito com ela. Senti que nesta montanha não há segregação. Todos os montanhistas (clientes ou trabalhadores) se igualam, se solidarizam uns com os outros. Todos se concentram num objetivo comum, o cume, e se ajudam a fim de deixar essa moderada estadia, um pouco mais leve e divertida. Fiz muitos amigos no Aconcagua, principalmente argentinos.

A expedição que leva ao cume do Aconcagua é cheia de desafios físicos e psicológicos. | Foto: Aretha Duarte/Arquivo Pessoal

Na minha terceira escalada rumo ao cume do Aconcagua, me vi perdendo forças diante de uma limitação mental. Estávamos no último acampamento, Coléra (5.950 metros), era madrugada, acho que por volta das 4h da manhã, saímos com o grupo para o planejado ataque ao cume, estava frio. Como de costume, essa não tinha sido a melhor noite na montanha, a essa altitude nós mal conseguimos descansar. Eu já me sentia baqueada, com cólica e fraqueza, sentia que não tinha a disposição necessária para um dia tão exigente como esse, seriam pelo menos mais 8 horas até o topo. Não comentei com ninguém, decidi observar o que aconteceria e seguir passo a passo, sempre em frente. Naquele dia nosso grupo estava bem enxuto, tínhamos em média um cliente por guia, não era fundamental eu participar da ascensão. Mas sempre entendi que a nossa mente nos impõe limites falsos, então, enfrentei. Após uma hora e meia de caminhada, na parada programada, Campo Independência (6.200 metros), tiramos um descanso de 20 minutos, nos alimentamos e hidratamos. Eu me sentia muito fraca, com a sensação que ali era mais seguro voltar sozinha ao Campo Colera do que seguir em frente com o grupo e apresentar um quadro pior de saúde, tendo que obrigar mais um guia a descer comigo. Foi quando falei com o guia argentino, um grande amigo, Carlitos, e ele disse: se te parece melhor, pode descer, aqui ficarão todos bem. O grupo estava em segurança. Fiquei tranquila ao receber essa mensagem e comecei a planejar o que faria para a recepção deste grupo após o cume. Eu decidi que deixaria muita água pronta e uma deliciosa sopa para quando voltassem do cume. Sem dúvida isso seria especial, pois sei bem como todos ficam debilitados após o cume do Aconcagua, mas decidi comunicar ao outro guia, o Carlos Santalena, brasileiro, que não titubeou em me olhar nos olhos, fazer uma 3 perguntas para atestar meu bom estado de saúde e decidir que eu ia subir, que eu não devia descer dali, não era um estado que merecia essa decisão. Então, ele disse: ‘Você vai subir. Tá comigo!’ Foi aí que eu senti o meu corpo mudar a temperatura, como se enchesse de energia dos pés a cabeça e me deixasse em estado de alerta. Decidi escutar o segundo Carlos e seguir ao cume. Confesso que dali em diante não senti mais nada, fiquei bem, me senti forte e com zero mal-estar.

Cume do Aconcagua a 6.962 metros de altitude. | Foto: Aretha Duarte/Arquivo Pessoal

Chegamos todos ao topo do Aconcagua e quando retornamos ao Campo Colera, já era noite. O grupo estava exausto, mas ainda me sobrava energia para ajudar cada um deles a remover as botas duplas e grampons, bem como servi-los com água, chá e sopa. Uma dia memorável e que fez diferença ouvir do meu amigo o atestado de  que eu podia subir, uma palavra de motivação fez a diferença.
Sou apaixonada por esse pico, porque foi nele que vivi minhas mais intensas e difíceis empreitadas. Na minha última visita, em janeiro de 2019, estávamos com um grupo muito forte, treinado, cheios de vontade de chegar ao topo das Américas. Eu estava confiante, já conhecia bastante das entrelinhas desta expedição, mas como em todas as outras tivemos que utilizar os dias extras na montanha, isso deixou o grupo bastante estafado. Foram pelo menos quatro dias ociosos entre os acampamentos, mas na última oportunidade de cume que tínhamos em nossa programação, saímos para o ataque. Como de costume eu ia fechando o grupo e observando os diversos ritmos, cadência e biomecânica da caminhada dos clientes. Em certo momento nos separamos e restaram dois guias rumo ao topo, o Carlos Santalena com a maior parte do grupo à frente e eu com um cliente, o Istvan, que tinha sido meu professor na Faculdade de Educação Física na PUC. O guia Eduardo Cotrim tinha voltado ao Campo Cólera com um cliente. Essa era minha quarta tentativa de chegar ao cume do Aconcagua, mas isso já não me importava, eu queria muito ver todos os clientes chegarem e experimentarem essa delícia que é alcançar seus objetivos, transpor os limites mentais. Mas, o István, estava bastante desconfiado, cansado, inseguro, por diversas vezes na subida declarava que bastava para ele, nos distanciamos muito dos grupo na linha de frente. Quando chegamos à Cueva (6.650 metros)  o István já apresentava dificuldades para respirar e lhe faltava energia para seguir caminhando. Mas, o pior mesmo era que ele tinha metido na cabeça que aquilo estava além de todas as experiência que já havia vivido, estava extenuado. No entanto, eu sabia que aquele não era o limite dele, ele tinha condições de saúde para seguir em frente, conversamos bastante e decidimos seguir um pouco mais e lentamente, atentos a cada movimento, a fim de garantir o deslocamento em segurança no trecho mais técnico desta ascensão, assim seguimos Aconcagua acima. Em condições normais seria uma hora até o cume. Quando recebi o contato do Carlos, dizendo que ele e os demais tinham chegado ao cume, todos estavam em êxtase, muito felizes e aguardavam a nossa chegada.

Aretha e os outros guias da Grade 6 no cume do Aconcágua. | Foto: Aretha Duarte/Arquivo Pessoal

O ideal seria eles esperarem no máximo mais 30 minutos, se alimentarem, hidratarem e descerem para garantir uma descida ainda com energia e disposição. Mas, O István parou, pediu para descansar, queria descer. Eu o respeitei, encontramos um pequeno platô, pedi que ele sentasse, tomasse um sachê de carboidrato e hidratasse para descermos, conforme o desejo dele. Eu o perguntei se era aquilo mesmo que ele desejava fazer, que eu estaria com ele o tempo todo e respeitaria a vontade dele. Enquanto isso, muitos grupos passavam por nós rumo ao cume, as pessoas estavam extremamente cansadas, lentas, verdadeiramente debilitadas. Enquanto eu pedia para o István, ficar tranquilo, respirar profundamente, também comentava ‘veja como eles estão cansados, claramente mais cansados que você’.

Sondei os sintomas que ele apresentava e me parecia em condição de chegar ao topo, cansado, mas tinha saúde para isso. Então, o Carlos me chamou pelo rádio e perguntou se estávamos subindo ou não, até aquele momento desceríamos, mas eu sentia que o István tinha condição de chegar, então pedi um momento ao Carlos e disse ao István: ‘Eu sei que você está cansado, mas vale eu ressaltar, ninguém, ninguém chega ao topo das Américas sobrando em energia, estamos muito perto e eu sei que você pode chegar em segurança. Vamos!’ Creio que nessa hora o István juntou as peças: tinha gente pior que ele seguindo em frente, além disso, eu atestava que ele chegaria em segurança. Ele tomou fôlego e respondeu que ia sim tentar chegar ao fim. Eu prontamente retomei o rádio e, com eco, cheia de alegria e esperança, disse:

‘-Carlos, podem esperar aí que eu e o István estamos chegando. Copiou?’

O Carlos imediatamente respondeu, dessa vez em espanhol:

‘-Venga, Venga Aretha que vamos esperar todos!!!’

Foram mais trinta minutos de ascensão, sendo que o Carlos e seu grupo já estavam no topo há pelo menos uma hora. Todos aguardavam o István. O abraçaram, choraram, riram, comemoraram e o Carlos gritava: ‘Uma máquina essa Aretha, uma máquina’, enquanto eu sinalizava mostrando 4 dedos e falava: ‘- É tetra, é tetra!!!’

Eu não levei o István, em nenhum momento o carreguei, ele chegou por conta própria, só precisou enxergar dentro dele o poder que tinha.

Dia de ataque ao cume. | Foto: Aretha Duarte/Arquivo Pessoal

Fiquei muitíssimo feliz e entendi que é muito mais gratificante contribuir para que o outro chegue, alcance, conquiste, faça e realize! As demais coisas, sempre serão acrescentadas.

Descemos todos juntos do cume, já desidratados. Por sorte, o guia Eduardo já tinha preparado água e sopa para todos. Nós dormimos e no dia seguinte descemos ao Campo Base Plaza de Mulas, onde celebramos como de costume.

Sempre volto do Aconcagua muito forte, compreendendo novos limites, sendo mais tolerante, paciente e entendendo que o que nós precisamos para viver bem, não tem preço. O essencial é fazermos uns pelos outros.”

Comemorando a chegada ao cume, junto com o István. | Foto: Aretha Duarte/Arquivo Pessoal




Escrito por

Thaís Teisen

Jornalista, formada pela FIAM-FAAM, com especialização em Mídias Digitais pela Universidade Metodista de São Paulo. É apaixonada por esportes, natureza, música e faz parte do time The North Face de Conteúdo Digital.