Esportes

Usar ou não oxigênio suplementar? Escalar com a ajuda de sherpas? Aproveitar a ajuda das cordas fixas? Esses são alguns dos questionamentos que dividem opiniões entre montanhistas de todas as partes do mundo. Existem os puristas que, seguindo os exemplos de Reinhold Messner e Jerzy Kukuczka, acreditam que a montanhas deve ser escalada sem a ajuda de oxigênio engarrafado e de forma independente. E também existem os montanhistas que acreditam é justo e muito mais seguro ultrapassar a zona da morte utilizando O2 suplementar, como fez o nepalês Nirmal Purja, que recentemente bateu o recorde mundial por ter conquistado todos os 14 cumes com mais de 8.000m de altitude em apenas seis meses.

Foto: Carlos Santalena/Grade 6

O guia de montanha Carlos Santalena fez uma reflexão sobre esse assunto e compartilhou um pouco da sua experiência e vivências no Everest. Confira, na íntegra, o artigo escrito por ele:

A utilização de oxigênio suplementar em altitudes acima dos 8.000m, sempre foi um assunto pertinente e polêmico no mundo no montanhismo, sobretudo após Reinhold Messner, considerado o Pelé do esporte, e, o não menos importante para história do montanhismo, Jerzy Kukuczka, polonês que em 1987 se tornou o segundo homem a completar a escalada das 14 maiores montanhas do planeta sem o uso de O2 suplementar. Os dois montanhistas tinham estilo agressivo e alpino, uma prática muito além de seu tempo e até hoje permanecem intocados, tendo rotas ainda não repetidas em montanhas por todo o mundo.

Ambos desmistificaram a utilização de oxigênio em altitudes extremas, provando que a fisiologia humana é capaz de chegar aos pontos mais altos do planeta sem utilizar O2 engarrafado. Messner, inclusive, defende que a utilização do oxigênio suplementar é uma forma de dopping. Para ele, escalar uma montanha deste porte de forma pura significa escala-la sem O2 extra e sem artifícios como cordas fixas e carregadores para equipamentos individuais. Do contrário, segundo Messner, estaríamos rebaixando a montanha a nosso nível e não atingindo o nível de exigência dela.

Messner, diferente de Kukuczka, é vivo até hoje e através destes questionamentos e afirmações inspirou uma vertente purista seguida por muitos outros esportistas. A verdade científica é que a fisiologia humana, diferente do que afirma Messner, é incompatível com altitudes acima dos 7.500m, considerada a zona da morte, pois acima disso não é fato que o corpo possa se aclimatar (processo de adaptação fisiológica a grandes altitudes, em que o corpo humano faz compensações para que suporte a atmosfera de ar rarefeito. Neste processo, primeiramente o corpo sobe os batimentos cardíacos e pressão arterial, posteriormente produz hormônios EPO e, por último, e com exposição mínima de 20 dias acima dos 5000m, começa a produzir glóbulos vermelhos), esse mecanismo faz com que possamos sobreviver em ambientes de pressão atmosférica baixa, como as altas montanhas.

Devido a esta incompatibilidade fisiológica, já comprovada cientificamente, entende-se pela comunidade de montanhismo que a utilização das garrafas de O2 após a famosa zona da morte é ética. Em uma gama de aproximadamente 6.500 pessoas que chegaram ao cume do Mt. Everest, apenas 100 delas alcançaram o cume sem a utilização de oxigênio engarrafado.

Foto: Carlos Santalena/Grade 6

Diante destas duas visões, vivemos no panorama atual uma super utilização das garrafas de O2 com muitos montanhistas passando a utilizá-las muito antes dos 7.500m, abusando de seu uso e buscando cumes a qualquer custo. Lembre-se que o que mais interessa não é subir uma montanha, mas, sim, como subir uma montanha. Além da questão ética na utilização de oxigênio suplementar, temos a questão da segurança.

Problema ambiental e risco pessoal

Imagine que você passa a utilizar O2 suplementar a 6.500m, sem fazer uma densa e sólida aclimatação prévia e quando você chega a 7.500, sua garrafa e o sistema de válvulas param de funcionar, o que fazer? As válvulas submetidas a temperaturas extremamente negativas, ventos fortes e outras intempéries climáticas, sofrem alterações, deformações e obstruções que devem ser evitadas e remediadas a tempo. Provavelmente este montanhista estaria em sério risco de vida e totalmente dependente de um equipamento artificial (garrafa de O2 e reguladores), para sua sobrevivência.

Além destas 2 grandes questões, podemos comentar que cada garrafa pesa 3,5kg e que se trabalharmos com clientes no Everest, por exemplo, temos que contar com um sherpa apenas para descer as garrafas vazias do campo 4, antes que virem lixo, como inúmeras outras que por lá estão. Dentro de uma logística já bastante complexa, como carregar pessoalmente todas as garrafas de oxigênio vazias? Melhor evitar e poder deixar o ambiente mais preservado. Afinal, tudo isso tem um alto custo ambiental e financeiro, já que cada Sherpa de altitude cobra aproximadamente US$ 5.000 por expedição.

As garrafas ainda utilizadas pela maioria dos alpinistas são russas, da Marca Poisk. Elas são projetadas para serem leves, feitas de titânio, com cobertura de kevlar e seladas com fibra de carbono. Mesmo assim, cada uma pesa 3.5kg. Da mesma marca existe o regulador ou válvula que permite uma controlar a saída de oxigênio de 0,5 a 4,0l/min, o que dá uma autonomia de escalada de 6 horas, utilizando uma média de vazão de 2,0l/min. Usualmente, utiliza-se 0,5l/min durante o descanso e à noite e 2,0l/min durante a atividade, podendo variar de acordo com o preparo físico e aclimatação de cada indivíduo. Para uma expedição ao Everest utiliza-se, no máximo, 7 garrafas por expedicionário.

Foto: Carlos Santalena/Grade 6

Além do oxigênio

Muito se discute sobre oxigênio e a forma purista de escalar as montanhas com mais de 8.000m de altitude. Mas, o problema é maior do que isso. Um fato que não pode ser esquecido é que, além do oxigênio, temos Sherpas que se expõe, pelo menos, ao dobro risco de um estrangeiro para carregar equipamentos, temos um sistema de cordas fixas instaladas por guias experientes no início da temporada, eliminando assim parte do fator técnico destas ascensões, temos “Icefall Doctors”, que são os guias locais responsáveis pela manutenção da cascata de gelo do Khumbu no Everest, zona de maior instabilidade e risco desta escalada, entre outras coisas. Então, o que é ser realmente purista nestas montanhas? Quantos realmente fizeram uma escalada em estilo alpino, independente, minimalista, carregando tudo o que necessitam? Tudo isso formam um questionamento para que possamos refletir que, dentro de um todo, o O2 é o suprimento primordial a vida, mas ainda temos uma gama enorme de artifícios e auxílios extras usados para atingir o topo.

Quando usar O2 suplementar, então?

Portanto, pela minha experiência, a recomendação é de que o uso de O2 suplementar deve ser feito após a zona da morte, com parcimônia e seguido de uma aclimatação prévia bastante sólida e densa. Desta forma, a escalada é feita de forma mais ética e segura. Testar-se algumas vezes assim antes de qualquer tentativa sem O2 suplementar, trará consciência e longevidade à sua escalada.

Não julgue antes de se provar. Ética é algo pessoal, busque aquilo que faz sentido a você!

Foto: Carlos Santalena/Grade 6

Escrito por

Thaís Teisen

Jornalista, formada pela FIAM-FAAM, com especialização em Mídias Digitais pela Universidade Metodista de São Paulo. É apaixonada por esportes, natureza, música e faz parte do time The North Face de Conteúdo Digital.