Inspiração

Quando somos crianças alguns momentos marcam tanto a nossa história que ficam para a vida toda. Experiências tão intensas assim podem influenciar fortemente as mais diversas decisões da vida adulta. A história de Moeses Fiamoncini é assim. Aos dez anos de idade ele viveu uma grande aventura que despertou o sonho de ser um explorador. Quase três décadas depois, ele realizou o sonho de criança ao conquistar a oitava montanha mais alta do mundo, o Manaslu.

Ele nem sempre dedicou a vida ao montanhismo, mas, mesmo quando estava fechado em um escritório, o sonho de criança ainda existia e estava apenas adormecido, esperando o momento certo de acordar e virar tudo de cabeça para o alto. Em 2008, Moeses resolveu dar uma chance e começar a colocar o desejo de ser um explorador em prática. Ele passou por diversos países, conheceu muitas culturas, morou em mosteiros, pegou carona, surfou e, enfim, em 2018, chegou a um dos maiores cumes da Terra.

Moeses nos contou todos os detalhes da sua expedição ao Manaslu e você confere o depoimento na íntegra no texto abaixo:

“Muito jovem, aos 10 anos, organizei uma ‘expedição’ com um amigo para subir uma pequena montanha próxima da minha casa, no interior do Paraná. Escondido de todos, é claro, foi minha primeira grande aventura. Quando cheguei ao topo da montanha, eu ficava imaginando o que estaria além do horizonte. Naquele momento eu sabia que era isso que eu gostaria de fazer: ser um explorador. Meu nome é Moeses Fiamoncini, tenho 39 anos e sou alpinista.

Desde 2008 viajo o mundo. Percorri mais de 80 países, residi em quatro nações em diferentes continentes (Reino Unido, Canadá, França e Nepal), escalei inúmeras montanhas, conquistei muitos amigos e muitas experiências. E a que eu desejo compartilhar com vocês nesta oportunidade é a expedição ao Manaslu, oitava montanha mais alta do mundo localizada na cordilheira do Himalaia, realizada em setembro de 2018.

Este desejo nasceu depois de guiar minha irmã mais nova, Giselle Fiamoncini, ao Campo Base do Everest em abril de 2018. Fiz uma promessa de somente retornar ao Nepal para realizar o sonho de escalar uma montanha de 8.000 metros, sem oxigênio.

Escalar uma montanha exige um preparo significativo, psicológico e físico. Este desafio começou a ser planejado assim que eu retornei. Na época soube que a alpinista uruguaia, Vanessa Estol, também estava com o mesmo projeto, então trocamos muitas ideias. Ela é minha amiga de longa data. Na oportunidade, ambos contratamos os serviços da empresa nepalesa Seven Summit Trek, especialista em expedições.

Cheguei no dia 29 de agosto, em Catmandu, capital do Nepal, 10 dias antes da data oficial de início da expedição e Vanessa chegou dias depois. Devido ao período das monções e alguns deslizamentos de terra, decidimos partir de helicóptero fretado.

O destino foi Samagaun, uma vila muito pequena e tranquila, localizada a 5 horas do acampamento base do Manaslu. Lá encontrei meu guia Temba Sherpa, especialista em alta montanha e em resgates de altitude.

No dia 10 de setembro, deixamos o vilarejo cruzando um portão e fazendo o juramento de só retornarmos novamente depois de alcançar o cume do Manaslu, a 8.163 metros de altitude.

Campo Base

Provavelmente a melhor maneira de descrever meu primeiro dia no acampamento base seja que estar lá era como me sentir em casa, estava coberto de tendas amarelas que hospedavam aproximadamente 200 alpinistas. O que eu não sabia era que as companhias de helicópteros estavam tendo problemas com o governo para obter permissão de voos em áreas restritas como a do Manaslu e também dificuldades devido às condições climáticas, atrasando assim a entrega de equipamentos e suprimentos. Isso significava que eu receberia minhas Duffles Bags 8 dias depois do planejado.

Meu aniversário, dia 14 de setembro, foi comemorado neste lugar magnífico aos pés da oitava montanha do mundo e no dia seguinte, como presente, recebi minha bagagem e chorei de felicidade. A partir daí estava pronto para iniciar o trajeto para aprimorar o processo de aclimatação antes da expedição oficial, com destino ao C3.

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Anoitecer no Campo Base. – Foto: Moeses Fiamoncini/Arquivo Pessoal.

Primeiro e único Ciclo de Aclimatação C1, C2, C3

No dia 16 de setembro, subimos ao Campo 1 (C1). O dia estava ótimo, sem vento e o sol brilhava. De repente ouvimos uma grande avalanche no pináculo leste da montanha, logo abaixo do Campo 2 (C2). Eu me acalmei e continuamos andando em frente. Parecia uma grande avalanche e fiquei impressionado, mas provavelmente para Temba era apenas um simples espetáculo da natureza. Quando chegamos ao C1, já haviam muitas barracas, porém estavam quase cobertas de neve.

No dia seguinte, quando chegamos ao C2, soubemos que um alpinista brasileiro e um sherpa foram pegos por uma avalanche. Felizmente sobreviveram e sofreram apenas pequenos ferimentos. Em dois dias, duas avalanches. É incrível como nos sentimos vivos nessas situações perigosas. Assim dormimos sob céu estrelado no C2, a 6.320 metros.

Devido à avalanche, havia um pequeno risco ao lado esquerdo da passagem a caminho do C3. Avaliamos a situação e resolvemos correr o risco. Percorrer o terreno frágil da avalanche foi um grande desafio psicológico, mas compensou porque conseguimos chegar a 6.730 metros. O local estava muito tranquilo, sem vento e o céu em um tom de azul muito claro. Depois de deixarmos os suprimentos, começamos a descer para o C2, C1 e Campo Base, onde passamos a noite.,

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Levando suprimentos para o C2. – Foto: Moeses Fiamoncini/Arquivo Pessoal.

Novamente no Campo Base

No Campo Base o tempo estava bom, mas sabíamos que iria mudar. Entre os dias 19 e 22 de setembro nevou 70 centímetros. Soubemos que haveria uma janela de bom tempo, de 25 a 28 de setembro, uma oportunidade ideal para tentar alcançar o cume.

No dia 22 de setembro comecei a fazer planos com Temba Sherpa e Vanessa Estol. Nesta ocasião, o alpinista espanhol, Sergi Mingote, juntou-se a nós para planejarmos o ataque final ao cume. Vanessa e seu o guia decidiram esperar o tempo melhorar. Eles chegaram ao cume no dia 27 de setembro.

A expedição

Definimos o seguinte roteiro: 23 de setembro C1; 24 de setembro C3, 25 de setembro C4; 26 de setembro Cume e descida ao Campo Base. Dependendo das nossas condições físicas, consideramos alcançar o cume diretamente do C3. Eu estava extremamente emocionado e sentia a energia da montanha. Além disso, por sorte eu estava na companhia de profissionais renomados.

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Descanso entre os acampamentos. – Foto: Moeses Fiamoncini/Arquivo Pessoal.

Saímos do CB no dia 23 de setembro, às 16 horas e chegamos ao C1 antes das 19h. Estávamos muito bem aclimatados. Eu e Sergi Mingote não queríamos dormir, era noite de lua cheia, passamos muito tempo contemplando a beleza, eu estava feliz por estar lá, feliz por estar vivo.

No dia seguinte, entre o C2 e C3, o tempo estava nublado e fazia frio. Percorremos um caminho difícil com muita neve fresca e profunda, dificultando a progressão. Em algumas partes a neve alcançava o joelho, não havia muita visibilidade, sendo as pegadas do guia na neve a única coisa possível de enxergar. Chegamos bem no C3.

Sabíamos que o grupo Fix Hope Team já tinha fixado a corda até o C4, mas ela havia desaparecido na neve e aí tivemos a oportunidade de participar da abertura da via. Foi uma experiência única, realmente incrível. Conversamos sobre as possibilidades de chegar ao cume e a opção aceita foi de seguir diretamente do C3, evitando assim de levar suprimentos para o C4. Abraçamo-nos, trocamos palavras de motivação e organizamos os últimos detalhes, eram 18h. Como já tinha previsto, levei comigo uma garrafa de oxigênio, em caso de emergência. E neste mesmo dia, às 22h, partimos rumo ao C4.

Rumo ao cume

Depois de sairmos de C3 encontramos rajadas de vento de 45 a 50 km/h. Em meio à muita neve, pouca visibilidade e ventania, caminhamos por mais de três horas até encontrarmos a primeira corda fixa, estávamos adentrando ainda mais no Glaciar. De lá, usamos as cordas fixas até o C4, em condições muito difíceis devido ao frio e ao forte vento. Depois de muito esforço, às 4h30 alcançamos o C4, a 7.450 metros de altitude. Às 7h, ainda estávamos a 7.600 metros.

A dificuldade das condições do vento, acabou por nos afastar um pouco do caminho, o que nos fez enfrentar uma parede de gelo com uma inclinação de aproximadamente 50°, foi um momento crítico onde passamos muito tempo tentando encontrar o lugar certo para fixar a corda. No local, encontramos os três sherpas da equipe do Fix Rope Team.

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Caminho acima do C4. – Foto: Moeses Fiamoncini/Arquivo Pessoal.

Foi aí que comecei a sentir muito frio nos meus pés. Habitualmente transpiro muito e, mesmo no frio, não foi diferente. Mas depois de 2h30 todo o suor começou a congelar. Meus dedos dos pés estavam praticamente congelados e eu sentia grandes bolhas nos dedos dos pés. Então, tomei a decisão de usar oxigênio. Eu não sei o que aconteceu, mas Temba disse que a garrafa tinha apenas 190 bares. A garrafa cheia tem normalmente 300 barras de oxigênio, o que significa que faltavam 110 bares. Com a notícia, eu precisei utilizar o oxigênio de forma consciente. Logo depois de 20 minutos, meu corpo foi se recompondo. Com neve sempre acima dos joelhos, os últimos 300 metros exigiram um grande equilíbrio mental. Foram, em média, duas horas de esforço para subir cerca de 100 metros. Ao me aproximar do cume, guardei o oxigênio para o caso de precisar mais tarde. Restaram penas 10 bares da capacidade.

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A Cordilheira vista quase do cume. – Foto: Moeses Fiamoncini/Arquivo Pessoal.

A chegada ao cume e a descida

Quando eu percebi que não faltava muito para o cume, tomei consciência que estava acima de 8.000 metros. Quando chegamos ao cume, às 16h, no dia 25 de setembro, fui invadido por um sentimento imenso de gratidão e realização. Estávamos sozinhos, um time de seis pessoas extasiadas, reverenciando a natureza, contemplando o horizonte, uma paisagem incrível e selvagem que misturava medo e deslumbramento. Não havia vento, o céu estava azul o todo o cansaço havia ficado para trás. Eu estava realizando o meu maior sonho e não há palavras para descrever aquele momento. Abrimos o caminho, com muita determinação e percorremos o trajeto em 18 horas. Permanecemos no cume por cerca de uma hora.

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Felicidade em chegar ao cume. – Foto: Moeses Fiamoncini/Arquivo Pessoal.

Apesar da satisfação que nos invadia, ainda havia a descida e, às 17 horas, começamos a retornar. O sol desceu rapidamente. Os sherpas já haviam partido e eu e Sergi ainda estávamos a cerca de 7.700m de altura, andando no escuro. Eu estava fazendo um grande esforço para não parar de caminhar, mas meu corpo estava muito cansado e eu sentia uma enorme vontade de dormir. Eu sabia que se eu parasse, poderia nunca mais acordar e o sonho se transformaria em tragédia. Então, resolvi utilizar novamente o oxigênio e, finalmente, avistamos o caminho para o C4 e C3.

Partimos no dia 24, às 22h, chegamos ao cume no dia seguinte e retornamos ao ponto de partida no dia 25, às 22h. Isso significava que caminhamos intensamente por 24 horas. Foi o momento mais difícil e desafiador que eu já vivenciei. Lembro-me da frase que alguém proferiu lá em cima e que me marcou profundamente ‘Subir foi uma opção, mas descer é uma necessidade’. No dia seguinte deixamos o C3 para o Campo Base e, então, tivemos o merecido descanso. Permaneci ainda por mais três noites no Campo Base esperando o retorno de Vanessa. Foram momentos mágicos e de muita troca de conhecimento. 

Além da bela imagem da imensidão do horizonte, que permanece viva na memória, desta incrível experiência ficaram os aprendizados que resumo em três palavras:

Auto superação: A busca para vencer nossos próprios limites.

Foco: Concentrar toda nossa energia, corpo e mente no aqui e agora.

Amor: É preciso amar o que se faz na vida.”

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A visão de quem chega ao topo do mundo. – Foto: Moeses Fiamoncini/Arquivo Pessoal.

Escrito por

Thaís Teisen

Jornalista, formada pela FIAM-FAAM, com especialização em Mídias Digitais pela Universidade Metodista de São Paulo. É apaixonada por esportes, natureza, música e faz parte do time The North Face de Conteúdo Digital.