Inspiração

Se desafiar em condições de frio extremo é algo que motiva o paulista André Arand. Em 2018 ele se aventurou em uma ultramaratona de 150km pela Finlândia durante um inverno extremamente rigoroso (relembre essa experiência aqui). Dois anos depois ele embarcou em um desafio ainda maior: atravessar a Islândia a pé também durante o inverno que não dá trégua. Ele e mais dois amigos percorreram 300 km em 12 dias, sob condições realmente extremas, com chuva, neve e ventos superiores a 150 km/h.

Os detalhes dessa expedição são contados pelo próprio André no depoimento que você confere na íntegra aqui:

Foto: Andre Ely/Arquivo Pessoal

“A emoção de finalmente chegar às famosas Highlands islandesas era grande. O trio subia pela encosta do vale Eyjafjarðarleið com dificuldade, quando uma tempestade assolou a expedição. O dia virou noite. Ventos de 70km/h cobriram a visibilidade. O GPS indicava o caminho seguro. Os trenós pesados dificultavam a progressão. O implacável inverno islandês mostrava sua força e trazia à tona a inevitável pergunta – o que estou fazendo aqui?.”

Há pouco mais de dois anos, André Arand começou a pôr em prática seu desejo de desbravar ambientes gélidos e inóspitos, participando de uma corrida no gelo, na Finlândia. Depois foi a vez de uma prova no Alasca. De lá, o engenheiro voltou decidido a executar um plano audaciado: atravessar a pé a Islândia no inverno. A proposta foi lançado ao amigo Tomaz Paniz, parceiro de aventuras há mais de 20 anos, que aderiu ao projeto. Apesar de absurda, a ideia tinha chances de sucesso.

O planejamento começou seis meses antes. A meta era percorrer 300km entre o norte e o sul da Islândia em 12 dias, em janeiro de 2020. Foram traçadas rotas, pontos de parada e estratégias. O projeto ainda ganhou um terceiro integrante, André Ely, que alimentava um fascínio pelo país. A equipe levaria a bagagem em trenós. A previsão do tempo exigiria monitoramento constante. Em janeiro, a Islândia registra apenas 5 horas de luz do dia, temperaturas entre -30° e 10° e ventos que superam 150km/h.

A partida foi no dia 6 de janeiro, em Akureyri, 400km ao norte da capital Reikjavique. O trecho inicial era em uma estrada de asfalto, por onde passavam caminhões, que retiravam a pouca neve existente. O trenó de 40kg ficava mais pesado. Não demorou para escurecer. O plano era caminhar 40km até uma igreja, mas foi interrompido na metade. O atrito do asfalto quebrou a base dos três trenós e obrigou a equipe a acampar ali mesmo.

Na manhã seguinte, Tomaz retornou à Akureyri, uma cidade de 16mil habitantes do interior da Islândia. Encontrar trenós à venda era uma tarefa impossível. A esperança apareceu em uma agência de turismo. O aventureiro Jon tinha dois trenós recém importados do Canadá e se dispôs a cedê-los. Tomaz voltou ao acampamento com os dois trenós e uma prancha de snowboard – que seria adaptada para a expedição. A caminhada reiniciou, com a estrada novamente coberta de neve. À noite, os ventos voltaram a se intensificar, e o grupo acampou em uma fazenda. Por sorte, o proprietário, incrédulo de que pudesse haver alguém caminhando ali naquele horário, convidou o grupo a se abrigar no terreno.

Foto: André Arand/Arquivo Pessoal

No quarto dia, a equipe precisaria vencer um desnível de 900m em 20km até as Highlands, um platô vulcânico que ocupa o interior da ilha – uma área desértica e inabitada. Já no início, placas sinalizavam o fim da estrada. O grupo seguiu, orientado pela margem de um rio vale acima. À medida que avançam, cresce o risco de queda e o perigo das avalanches. Com a proteção das paredes do vale, eles decidiram passar a noite no local.

Foto: André Arand/Arquivo Pessoal

Amanhecendo, o desafio recomeçou já com a travessia do rio por uma pequena ponte de gelo, que resistiu ao peso dos três forasteiros. O caminho, aos poucos, ficava mais íngrime, obrigando os brasileiros a carregarem os trenós ladeira acima. Foram 8km percorridos em 5h, até às Highlands. De repente, uma dura tempestade atingiu a região. A equipe não podia parar.

Foto: André Ely/Arquivo Pessoal

Após 6 horas de ventos assustadores, uma reviravolta trouxe calmaria para aquela noite de inverno. E assim, o grupo alcançou Laugafell. A recepção não poderia ter sido melhor. O vestiário do refúgio estava aberto e serviu de abrigo. As águas termais garantiam o aquecimento – um oásis perfeito para descansar.

Foto: Tomaz Paniz/Arquivo Pessoal

A previsão indicava uma pequena janela de tempo bom, para encarar 50km até Nyidalur. Para isso, foi preciso sair cedo. O espetáculo do nascer do sol amenizou o caminho cansativo. O branco se perdia no horizonte. A imensidão sem constrastes reduzia a noção de distância e profundidade. As paradas eram rápidas, apenas para alimentação e hidratação. O silêncio só era quebrado pelo som estridente das raquetes de neve rompendo o gelo a cada passo. Após 15 horas de caminhada, lá estava Nyidalur, um refúgio maior que Laugafell. A casa principal conta com cozinha, refeitório e um segundo andar com dois salões grandes para dormitório, e serviu de abrigo durante uma forte tempestade ao longo de dois dias.

Foto: Tomaz Paniz/Arquivo Pessoal

Quando a previsão do tempo se mostrou mais favorável, o trio retomou a travessia. Mas o prazo estava apertado. Faltavam 180km e a previsão mostrava tempo bom para os próximos 4 dias. O caminho até Versalir começou com a descida das Highlands. Sem nuvens no céu, as cores do nascer e por do sol deram novo fôlego. Depois de 17 horas e 49km, os três brasileiros chegaram ao ponto de acampamento. Apesar do cansaço extremo, dormiram apenas 3 horas, em uma corrida contra o relógio.

Foto: André Ely/Arquivo Pessoal

De Versalir, partiram para mais 51km até o Highland Center. No caminho, tentaram registrar o fenômeno da aurora boreal, que surgiu tímida no céu. Os primeiros sinais de civilização surgiam no horizonte, enquanto a neve escassa dificultava o avanço com trenós. A pausa só veio às 7h da manhã, depois uma madrugada exaustiva. A fim de encurtar a parada, os três abandonaram a barraca e dormiram no hotel Highland Center. Poucas horas e uma boa refeição garantiram a energia necessária para o trecho final de 80km. Como havia apenas 24 horas para concluir a expedição, trenós e equipamentos pesados ficaram para trás. Na bagagem, apenas cansaço, frio e a motivação de chegar ao fim.

Foto: André Arand/Arquivo Pessoal

Após varar a madrugada, as dores e o desgaste obrigaram o grupo a fazer uma parada breve em Afternoon Cottage para três horas de sono. Foi o suficiente para enfrentar os últimos 30km. Aos poucos, o tempo bom foi substituído por uma chuva fina e neve. À beira da estrada, vinha a distração – cavalos islandeses extremamente dóceis. Apesar do esgotamento físico latente, não havia espaço para desistir. Até que a noite chegou, e com a escuridão, a equipe avistou as luzes da costa sul do país. Enfim, às 20 horas de 18 de janeiro de 2020, André Arand, André Ely e Tomaz Paniz chegaram a cidade de Hella. Após 312km de caminhada em 13 dias, foram a primeira equipe brasileira a concluir a travessia invernal da Islândia. Na bagagem, mais que cansaço e dores, ficaram as memórias de um país incrível.

Foto: Tomaz Paniz/Arquivo Pessoal

Escrito por

Thaís Teisen

Jornalista, formada pela FIAM-FAAM, com especialização em Mídias Digitais pela Universidade Metodista de São Paulo. É apaixonada por esportes, natureza, música e faz parte do time The North Face de Conteúdo Digital.